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Conto: Perda - Parte IV de V

Por: Franz Lima. Curta nossa fanpage: Apogeu do Abismo.

Leia antes a primeira parte: Perda I; a segunda: Perda II e a terceira: Perda III


Suaves mãos tocam minha face. Meus olhos estão pesados e abro-os com esforço, tão pesadas estão minhas pálpebras.
A visão está enevoada e demoro a focar quem está à minha frente. A surpresa é grande.
- Ana? – digo, sem acreditar. – O que é isso? Um sonho?
Ela nada diz. Calmamente, seus dedos roçam os lábios dele, provocando um leve torpor. Ela, então, diz:
- Olá, amor. – e sorri. – Estava com saudades. Parece que estamos afastados há anos, não é?
- Bom... achei que você estivesse morta. Foi um pesadelo, não? Ou estou ainda sonhando? Estou confuso com isso tudo.
Ela olha para ele com pena. Há pesar em seus olhos. Há amor em seus olhos. Sobretudo, há verdade neles.
- A confusão irá passar em breve. Não tenho permissão para lhe dizer o que ocorrerá, porém tenho permissão para lhe dizer o que sinto. E, mais do que nunca, o que sinto é paixão por você, amor por tudo que representa... por tudo que vivemos. Não deixe que o tempo apague isso, por favor.
Os olhares se encontram mais uma vez. Desta vez, contudo, eles sabem o quanto este contato é importante.
- O tempo não tem forças suficientes para me fazer esquecê-la. Eu prometo.
- Bom. Agora – ela seca suas lágrimas com as mãos – volte a deitar e não se preocupe comigo. Eu sempre estarei bem enquanto você estiver feliz. Deite e durma...
E o peso do sono o abraça mais uma vez. Contudo, este foi o mais reconfortante sono de sua vida. Não havia cansaço. Havia paz.
Chego até meu pai enquanto ele dorme. Há uma calma tão boa em seu semblante. Uma calma tão ampla e contagiosa. Apesar de seus problemas, ele sempre teve a face de um homem tão calmo. Eu, quando pequena, achava que ele era incapaz de sentir raiva, tamanho seu controle diante das adversidades. Penso ter herdado isso dele.
Sua respiração está suave. Sinto uma pontada de angústia ao ver a posição em que dorme. Seu pescoço deve estar doendo, de tão torto que está.
Ainda não me acostumei com minha condição. Chego até ele com uma velocidade inacreditável. É como se flutuasse em partículas. E estas mesmas partículas fossem impulsionadas por uma explosão de supernova. Não há como descrever com exatidão meu estado.
Atravesso suas pálpebras e avanço por seus olhos. Os olhos sempre serão a janela da alma, sempre. Há trevas e medo. Há dúvidas e certezas. Há uma infinidade de sentimentos e anseios, todos conspirando em sua alma. Espero ter forças para dirimir um pouco deste conflito.
Conversamos por horas intermináveis. Pelo menos, esta é a sensação que ele terá ao despertar.
Conversamos e, juntos, chegamos ao melhor resultado que um diálogo pode trazer. Agora, só me resta esperar e rezar. Farei minha parte e, ainda que triste, ele fará a dele.
Foi bom ficar mais um pouco no colo de meu pai e receber dele o carinho que só o amor pode trazer. Foi bom.
 Tenho um nome, mas tenho vergonha dele. O que vou fazer é algo impensável para um pai. Sei que é certo. Sei o quanto é importante tomar esta atitude. Porém, mais importante é não recuar diante da minha decisão.
Caminho por corredores brancos e, neles, apenas ouço o burburinho de comentários abafados. Decisões (como a minha) são tomadas e vidas são poupadas ou ceifadas. Homens de branco passam apressados e, pouco depois, ouço apenas o som de seus passos. Em segundos estarei de frente com um deles. Não será uma rota de colisão, será um momento onde um único homem falará, enquanto o outro ouve. Direi o que sinto. Direi o que penso. Direi, infelizmente, para desligar os equipamentos caso ela tenha que viver sob a dependência das máquinas. Não quero ter uma planta para aguar dia a dia. Quero minha filha de volta.
Encontramos-nos. O médico se surpreende com a minha abordagem. Agarro seu braço e, apertando-o, digo tudo o que (minha filha mandou dizer) sinto. Não vejo bem seu rosto, já que meus olhos estão tomados pelas lágrimas. Falo sem parar e ele ouve. Sinto que ele percebe meu desespero. Sinto que ele percebe a verdade em minhas palavras.
Meus lábios se movem incessantemente, proferindo palavras as quais jamais deveriam ser ditas.
Tenho um nome, mas não importa mais. O que interessa é salvar ao menos a memória de Ana. Salvar a alma de minha filha amada.
A dor é forte. Agora, é só aguardar o momento certo. Todos estão preparados, inclusive eu mesma. Os minutos transcorrem incessantemente. No fundo, eu gostaria muito de ver acontecer tudo de outra forma. Mas quem sou eu para querer algo? Quem sou eu para desejar algo além do que já me foi concedido? Nada, não sou mais nada e, em breve, serei uma lembrança.
Espero que uma lembrança boa...
Estou contemplando meu corpo. É a coisa mais estranha dentro da minha existência. Contudo, não é tão perturbador como já havia pensado. Todos, creio, já pensaram em sua própria morte, e eu não sou uma exceção a esta regra. Morrer, agora, não me parece tão terrível. Não estou vendo o esqueleto, vestido de preto e com sua foice na mão. Estou vendo apenas meu corpo e o de minha mulher, deitados em um leito frio, cobertos por finos lençóis brancos. Ela não me parece tão mal. Mas o que são aparências? Estou vendo apenas a aproximação do fim, sem saber com certeza se será um fim ou um começo. Dúvidas torturando minha alma. Dúvidas de um futuro, incertezas de um passado e um presente onde o movimento dos ponteiros dos segundos pode trazer a dor a qualquer instante.
Tudo isto me atingindo de uma só vez. Será, penso, que quando despertar, se despertar, conseguirei me lembrar de alguma coisa? Acho que não. Na verdade, não estou preocupado com isto. Na verdade, estou preocupado é com Ana. Eu não posso vê-la, apenas senti-la. E, dela, emana uma tristeza muito forte. A tristeza que só a perda e a separação podem trazer.
Aconteceu algo que inesperado. Em pé, à minha frente, está Hans. Não seu corpo. Eu vejo seu espírito, vejo suas mãos se agitarem no ar, inquieto por não me ver. Ele pode me sentir, porém só eu posso vê-lo. E, para piorar, ele está sentido, não sei como, minha aproximação. É visível seu transtorno por estar preso a este problema. É visível seu transtorno e decepção por não ter como me alcançar. Coisas intrigantes e intangíveis. Decisões tomadas por alguém muito acima de nós. Decisões que aceito passivamente. 
CONTINUA...


Comentários

  1. Poxa, Franz...você conseguiu me fazer emocionar com esse conto. A sensibilidade da sua narração é fantástica! Você consegue nos fazer ficar angustiados mesmo diante da situação da história. É uma história bela, mas ao mesmo tempo tão trágica =S Fico pensando como reagirei à parte V.

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  2. Brother, não há como agradecer por palavras como essas. Espero, sinceramente, que o final do conto faça jus a elas.

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