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Pioneiros e heróis do espaço: mortos em um balão

* Há exatamente 100 anos subir 7400 metros, num balão, era um feito memorável. Consagrados por isto, três franceses - Sivel, Crocé-Spinelli e Tassandier - resolveram tentar uma aventura ainda mais perigosa: ultrapassar os 8 mil metros de altitude. Uma temeridade, numa época em que não existiam os balões ou as máscaras de oxigênio e este elemento precioso era levado para o alto em bexigas de boi com bicos improvisados. Uma temeridade tão grande que dois dos pioneiros morreram. Com eles, desapareceu boa parte das técnicas de ascensão da época que só os dois conheciam.

Texto de Jean Dalba

Sivel
No dia 20 de abril de 1875, mais ou menos 20 mil pessoas acompanhavam à sua última morada, no cemitério de Père-Lachaise, os despojos de Teodoro Sivel e de Eustáquio Crocé-Spinelli - os nomes, na época da produção do artigo, eram escritos em português para facilitar a leitura e "valorizar" nossa própria cultura. A grafia correta dos nomes é Théodore Sivel e Joseph Eustache Crocé-Spinelli. Continuarei a usar a grafia da época.
Atrás de Hervé Mangon, membro do Instituto e presidente da Navegação Aérea, notava-se o representante do marechal de Mac-Mahon, as mais altas personalidades francesas e um grande número de ilustres sábios, alguns dos quais vindos de países distantes. 
Quem eram aqueles dois personagens aos quais era prestada tão grande homenagem? Tratava-se de dois pioneiros, heróis da ciência, mortos no decurso de uma experiência que deveria compor interessantes dados sobre a composição química do ar em grandes altitudes.
Teodoro Sivel tinha 41 anos. Ele nascera em Sauvé, no Gard. Crocé-Spinelli tinha 31 anos e nascera em Mobazillac, perto de Bergerac, na Dordonha.
Eles haviam se encontrado na Sociedade de Navegação Aérea de Paris. Ambos protestantes, rapidamente simpatizaram com a causa, sobretudo em virtude de sua paixão comum pela aeronáutica.
Engenheiro civil, formado pela Escola Central, Crocé-Spinelli havia publicado numerosos artigos no jornal L´Aéronaute, bem como estudos sobre “a estabilidade dos aparelhos destinados a se moverem no ar” e “os melhores propulsores aplicáveis à navegação aérea” e, trabalho notável para a época, tinha aperfeiçoado um sistema de hélice de passo variável em marcha.
Quanto a Sivel, tinha atraído a atenção dos meios científicos por um projeto sensacional e perfeitamente estudado de uma exploração do Pólo Norte em aeróstato. Era um excelente navegador e, também, um técnico em balões e cujo estudo havia trazido importantes aperfeiçoamentos concernentes à eficácia e à segurança em vôo.

Um feito sensacional

Crocé-Spinelli
Ele acabara de conceber um balão de um tipo novo, cujo volume era de 3 mil metros cúbicos e que batizara com o auspicioso nome de Zénith. Na primavera de 1875 esse balão, costurado e montado na sua propriedade de Sauve – serviços que haviam exigido um ano de trabalho às mulheres da terra de Florian, que Sivel contratara – foi levado para Paris na expectativa de uma primeira experiência.
No dia 23 de março de 1875, levando a bordo Crocé-Spinelli, Sivel e o sábio jornalista Gastão Tissandier, ele alçou vôo para uma primeira viagem financiada pela Academia de Ciências.
Após 40 horas de um silêncio inquietante soube-se que o esférico tinha tocado o solo em Arcachou, depois de se haver mantido no ar durante 23 horas, tendo atingido a altitude de 7400 metros e batido, assim, o recorde mundial de permanência em vôo.
“Este feito sensacional – conta um compatriota de Sivel numa brochura que nos chegou às mãos por intermédio do prefeito de Sauve – teve repercussões no mundo inteiro e elevou o nome dos três pioneiros do ar à categoria de heróis.”
Mas Sivel e Crocé-Spinelli tinham outras ambições a satisfazer. Certos da segurança de seus aeróstato, cujas qualidades excepcionais de navegabilidade acabavam de experimentar, combinaram, de comum acordo com Tissandier, tentar uma ascensão superior a 8 mil metros.
Para essa tentativa o Zénith foi objeto de numerosas modificações inspiradas pelos resultados da experiência precedente. A principal foi armazenar em bexigas de boi uma grande quantidade de oxigênio que os sábios podiam respirar pela boca, utilizando tubos munidos de bicos.
Sivel, cuja meticulosidade proverbial nada esquecera, a fim de que o balão, que transportava os mais recentes aparelhos científicos, pudesse cumprir sua missão com todas as possibilidades de sucesso. No dia 15 de abril daquele ano de 1875, num dia radioso, os três intrépidos aeronautas tomaram seus lugares na cesta de vime colocada sob o grande balão, que acabava de ser enchido num terreno da usina de gás de La Villete.
Uma testemunha ressalta a grande serenidade daqueles três homens que já contam, no seu ativo, com numerosas ascensões. A filhinha de Sivel, de 6 anos, envia beijos a seu pai.
Exatamente às 11h35 o Zénith ascendeu majestosamente no azul e atravessou Paris. Durante um longo espaço de tempo foi visto brilhando sob o sol, animado por uma brisa suave, levando as esperanças dos sábios que uma grande paixão reunira numa aventura sem precedentes.
Às 16 horas o magnífico balão, estraçalhado, foi encontrado em volta de uma árvore em Nerault, na pequena província de Indro. Fora da barquinha, mais ou menos intatos, jaziam os corpos sem vida, os rostos quase negros e cobertos de sangue de Spinelli e Sivel.
Perto dos dois aeronautas, Gastão Tissandier, sobrevivente providencial deste drama, se achava de joelhos, com uma expressão espantada, vítima de grande dor.
A 250 km de Paris, o Zénith acabava sua carreira, arrastando para a morte dois sábios aos quais o mundo científico atribuiu o titulo de “heróis legendários sacrificados em plena glória, na conquista do espaço”.
Como se explica que uma experiência tão perfeitamente concebida tenha podido terminar numa pavorosa catástrofe? O Zénith tinha subido até 8600 metros, altitude prodigiosa, sob uma pressão atmosférica de 260 milímetros (a pressão média, ao nível do mar, na Europa Ocidental, é de 760 milímetros).
E isso explica tudo. O único sobrevivente da tragédia, Gastão Tissandier, contou a experiência no Livro de Ouro, consagrado a Sivel: “Às 13 horas, o balão tinha ultrapassado 5 mil metros. Sentíamos todos muita alegria. Às 13h20 atingimos 7 mil metros. A temperatura era de 10 graus abaixo de zero. Sivel e Crocé estavam pálidos e eu me sentia fraco. Aspirei um pouco de oxigênio, que me reanimou. Subíamos, ainda. Foi quando Sivel me perguntou:
-Temos bastante lastro. Será preciso jogá-lo?
Crocé concordou. Sivel pegou sua faca e cortou três sacos de 25 quilos. Procurei agarrar o tubo de oxigênio, mas não consegui levantar o braço. Tentei gritar: “estamos a 8 mil metros!” Mas minha língua estava paralisada.
De repente, perdi os sentidos. Às 14h08 voltei a mim, por um instante. O balão descia rapidamente. Pude cortar um saco de lastro para diminuir a velocidade e escrever no meu registro de bordo: estamos descendo muito!


O rosto negro, a boca em sangue

Sivel e Crocé continuavam desfalecidos no fundo da barquinha. Mal acabei de escrever estas linhas fui tomado de intenso temor e desmaiei de novo. Descíamos velozmente. Croce, que tinha voltado a si, me sacudiu o braço: “jogue lastro”, gritou. Mal pude abrir os olhos e nem pude verificar se Sivel tinha acordado. Lembro-me de que Crocé desenganchou o aspirador e atirou-o fora, assim como jogou lastro, cobertores, etc. Mas tudo isto é uma lembrança confusa e tenho a impressão de ainda não ter acordado...
Que se passou, então?
Suponho que o balão deslastrado, impermeável e quente, subiu mais uma vez para as mais altas regiões. Às 15h15 tornei abrir os olhos e me senti aturdido. Mas meu espírito se reanimou. O balão descia com uma velocidade assustadora. Ajoelhei e tentei puxar Sivel e Crocé pelo braço. Meus dois companheiros estavam agachados com as cabeças cobertas por mantas. Reuni todas as minhas forças e tentei levantá-los. Sivel estava com o rosto negro e a boca escancarada, cheia de sangue. Croce tinha a boca fechada e sangrando. Contar o que se passou então é impossível. Eu sentia um vento horroroso debaixo para cima. Estávamos ainda a 6 mil metros, mas logo a terra começou a se aproximar. Quis pegar minha faca para cortar a corda que sustinha a âncora, mas não consegui encontrá-la. Estava meio louco e gritava: Sivel, Sivel! Por sorte encontrei uma faca e pude soltar a âncora.


Ele se salvou por um milagre

O choque com a terra foi de uma extrema violência. O balão pareceu achatar-se, mas o vento o arrastou. A âncora não se encravava e a barquinha deslizava pelos campos. Os corpos dos meus desditosos amigos eram jogados para lá e para cá. Pude então alcançar o cordão da válvula e o balão começou a se esvaziar.
Quando saltei no chão fui tomado por uma superexcitação terrível e me senti abatido e lívido. Pensei, mesmo, que ia morrer.
No entanto, me refiz pouco a pouco. Reparei então, que os corpos de ambos estavam frios e crispados. Providenciei para que aqueles corpos queridos fossem abrigados numa granja vizinha”.
Foi graças ao seu temperamento linfático e ao seu desmaio total que Tissandier se salvou. Seus desventurados companheiros não tinham podido suportar a fraca pressão atmosférica e a insuficiência de oxigênio provocara-lhes uma ruptura nos vasos capilares dos pulmões. Mas a morte destes pioneiros tinha acabado de abrir novos horizontes para a ciência. Croce e Sivel tinham mostrado mais um perigo a ser vencido nos ares.
Ou seja, seu sacrifício permitiu conhecer os perigos a que estava sujeito o organismo humano nas grandes altitudes. Não foi um sacrifício vão.

* Matéria constante da revista “Grandes acontecimentos da História”, publicada em 1975. O conteúdo ainda está atualizado, apesar da longa data de publicação original.

Comentários

  1. Pensei que no primeiro dia de 2012 você fosse tirar uma pequena folga. Enfim...para mim a imaginação é importantíssima para o avanço cientifico. Para mim é triste ver homens de ciência que menosprezam o poder da imaginação, para esses posso dizer uma coisa: leiam Júlio Verne e H.G. Wells. Lendo esse texto me lembrei desses dois autores.

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  2. Na verdade, amigo, eu estou tirando esta folga. Mas já havia deixado este post pronto para não abandonar os leitores. Suas lembranças de escritores são ótimas...

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