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Conto: Perda - Parte Final


Por: Franz Lima. Curta nossa fanpage: Apogeu do Abismo.

Leiam antes a primeira parte: Perda I; a segunda: Perda II, a terceira:Perda III e a quarta: Perda IV.
Meu corpo teve duas paradas cardíacas em um curto intervalo de tempo. Fui salva por um esforço brutal da equipe médica. E, mesmo assim, já não podem fazer muita coisa por mim. O médico chefe conversa com meu irmão, dizendo não compreender bem o que ocorre. Ele diz que, em sua carreira, já vira coisas diferentes, muito estranhas. Nesta, contudo, algo mais estranho ocorria. Era como se a mulher tivesse desistido de viver, explica.
Estou ao lado de meus parentes mais queridos. Todos choram.
Estou ao lado de meu amor. Ele não pode chorar, mas é o mais triste entre todos que aqui estão.
Logo, estarei ao lado daqueles amados que se foram. Logo, estarei em paz. Logo todos estarão...
O que se passou a seguir foi dramático e rápido.
Ana teve uma última parada cardio-respiratória. Antes disso, contudo, ela já estava em total isolamento. Os parentes não puderem sequer ficar próximos do vidro da Unidade. Eles ficaram isolados por uma cortina que os impedia de ver. Creio que assim foi melhor.
Ana teve uma morte rápida. Houve dor, muita dor. E essa onda de sofrimento se espalhou por todos aqueles próximos a ela. Não havia como não sentir aquela perda. Não havia como evitar chorar por alguém tão especial.
Agora, sua morte poderia ser o decreto de vida para Hans. Só o tempo estava contra ele. E o tempo é sempre impiedoso com todos.
 Ela se foi. Simples assim. Ela se foi para sempre. Não posso mais senti-la e isso me traz uma vontade incontrolável de gritar. Gritar até minha garganta sangrar. Gritar até que Deus me ouça e olhe para mim. Queria que seus olhos fitassem os meus e vissem o arrependimento e a angústia neles. Queria sentir o peso de sua fúria por eu ter errado tanto.
Todavia, acho que sequer sou digno disso. Não terei este prêmio concedido. Não poderei acompanhar minha amada em sua nova jornada.
Agora, sinto um torpor invadir meu espírito. Estou vendo tudo se tornar enegrecido. Estou voltando ao meu corpo, sem saber as conseqüências disso.
Caso consiga fugir de minha atual condição, sei que julgamentos me aguardam. Caso consiga regressar, quero ser condenado por tirar a vida da única pessoa por mim amada e que me amou.
16/05/2004 – Domingo – 21:50h

Eles tentam a todo custo me ressuscitar. Aplicam choques e injetam substâncias químicas em minhas veias. Eles realmente se esforçam.
Do lado de fora da sala, sinto o pesar tomando conta dos corações daqueles que me amam. Aqui dentro, vejo uma última vez aquele que amo.
Eles ainda tentam me salvar.
Atravesso o corpo onde habitei e toco o coração. Ele está parado. Concentro toda a minha força de vontade nas mãos e comprimo o músculo cardíaco. Agora estou certa de que ele jamais voltará a pulsar.
Olho para o corpo, já sem vida, e lembro de muitas coisas boas pelas quais passei. Neste momento, fico com medo do que está por vir, mas, independente disto, sei que agi corretamente.
 - Lamentamos a morte de sua filha, senhor. Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. Usamos...
- Não importa. – interrompe o pai de Ana. – Ela se foi e essa é a realidade. Quer dizer algo?
O cirurgião olha para o homem e tem compaixão por ele. O que virá não será fácil, ele sabe, contudo é a decisão dele a única capaz de evitar uma tragédia completa.
- Já lhe falaram sobre o transplante, acredito. O senhor já tem uma decisão? A vida de seu genro depende do tempo. E, para ser sincero, tempo é o que não temos.
O velho olha com interesse para o médico. Ele lembra que sua filha um dia quis ser médica.
- Eu já tomei a decisão. Só peço para me dar um único minuto. Preciso acalmar meu coração. Preciso de serenidade para ser justo. Justo comigo e com ele.
- Espero que sua decisão seja a mais acertada – disse o cirurgião, já se distanciando.
- Eu também. – sussurrou o pai de Ana.
Três meses mais tarde

Respiro ainda com dor. Em meu peito, os pulmões da minha mulher arfam por mim. Tenho sua alma viva. Suas imagens, sua voz, enfim, ela por inteiro em meu íntimo. Cada vez mais viva.
Perdi o contato com o pai de Ana. Sei bem o que ele pensa e não vou lhe dar o desprazer de minha presença. Ele optou por me salvar. Não por mim, mas pela filha. Optou me salvar e, desta forma, manter sua filha e sua memória vivas. Porém nunca optou em me perdoar. Não tiro sua razão. Não o culpo.
Já se passaram três meses e pouco da morte dela. Ainda estou em observação pelo transplante e, segundo os médicos, a rejeição ainda é uma hipótese. Não me disseram qual seria minha expectativa de vida e, sinceramente, não me importa. O que é viver, quando não se tem mais um motivo?
Todos os dias choro a perda. Todos os dias peço perdão por meu erro. Todos os dias peço a paz. Todos os dias peço para reencontrá-la e, em um abraço, lhe pedir desculpas. Gostaria de ter partido no lugar dela, só que não tenho poderes para decidir isso, infelizmente.
Hoje, sinto sua presença. Não algo fantasmagórico. Não algo sobrenatural. Sinto-a próxima de mim como jamais esteve. Sinto-a como parte integrante de minha alma e meu coração. Pressinto ter pouquíssimo tempo de vida e, durante ele, irei me dedicar ao máximo para a correção dos estragos que provoquei. Perdi minha amada, perdi minha dignidade e matei pessoas com um carro. Tudo isso eu assumo. Mas ainda hei de provar minha capacidade em buscar uma correção (é possível?) do que fiz. Ainda provarei não ser o monstro descontrolado de que fui acusado. Errei e pagarei. Errei e assumo. Errei e sofro. Sofro como só um condenado é capaz de saber.
Que a punição venha e limpe meu espírito. Que um dia, esse fardo se torne mais leve.
Espero ter tempo suficiente para provar ser algo melhor do que fui rotulado pela família de Ana, alguns amigos e outros. Espero fazer jus ao seu sacrifício, meu amor. Em breve estaremos juntos. Muito em breve.
A noite chega. Hans dorme calmamente, apesar do incômodo em seu peito. Ao seu lado, uma bela mulher o contempla. Ela passa as mãos no rosto dele e seca uma lágrima. Ela pode ver seus sonhos e sabe de seu martírio. Ela está ali para guiá-lo a um lugar melhor, a um lugar onde o perdão é uma realidade, não uma promessa.
Suavemente, ela deita-se ao lado dele, passando a perna por cima da dele e abraçando-o. Ele não percebe nada.
Os lábios de Ana se aproximam da face dele e ela sussurra:
- Vamos amor, o tempo do sofrimento e do pesar acabou. Hoje, estaremos juntos como nunca estivemos. Hoje, sua redenção chegou.
Ainda dormindo, ele movimenta os lábios entorpecidos e diz:
- É tudo que mais quero.
Na manhã seguinte, o corpo é encontrado sem vida. Os médicos não se surpreendem. Pouquíssimos pacientes chegam a um ano de vida em um caso como este. Pouquíssimos.
No entardecer do mesmo dia, Hans é sepultado. Ele não tem parentes para chorar sua morte. Apenas um homem solitário está ao lado de sua cova, chorando. Apenas o pai de Ana o acompanha até sua última morada.

Comentários

  1. Franz, meus parabéns! Conseguiu finalizar muito bem seu conto. Emocionante, trágico...uma verdadeira história de amor belíssima! Me deixou meio "perdido" ao terminar. Uma sensação meio de tristeza... =/

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    1. Brother, ouvir isso é bom demais. Quando um escritor atinge seu público, provocando emoção, ele está recebendo a recompensa por escrever. Obrigado, grande amigo.

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  2. Postei um comentário na primeira parte e decidi aguardar pela última para ver como seria o desfecho. Toda a trama esta bem amarrada, o drama (sem exageros) é bem desenvolvido e, em minha humilde opinião, a mensagem de que existe vida e por vezes sofrimento após a morte, foi passada. Em outras palavras... Parabéns, pois tens um bom conto em mãos.

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    1. Thiago, agradeço pela sinceridade e, principalmente, por dispor seu tempo lendo meu conto. É um estímulo a mais quando há retorno pelo que produzimos. Obrigado...

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  3. Franz, muito emocionante o conto, meus parabéns! Realmente mostrou o peso da perda, assim como o peso do amor.

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    1. Obrigado, Priscilla. Fiquei muito feliz com o retorno de alguns dos leitores deste conto.
      Agora, resta juntar a galera do blog para participarmos da coletânea "Malditas", da Estronho.

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