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O demônio: seus amigos e inimigos (e sua história)


Para muita gente, desde que o mundo é mundo, crer no Demônio é mais fácil do que crer em Deus. Antes de qualquer coisa, porque é mais fácil visualizar o Demônio – e a imaginação dos homens vem se exercendo, ao longo dos séculos, em figurá-lo das maneiras mais variadas e horripilantes. Depois, porque as obras do Demônio – do mal – são bem mais evidentes do que as da divindade.

O Diabo é Deus ao contrário. É a sombra negativa da divindade.

Desde a mais remota antiguidade, o homem religioso sempre encontrou lugar em seus rituais para cultuar o aspecto negativo da divindade. “Em todas as religiões, indistintamente, encontramos as idéias do Diabo, acompanhando opositivamente a de Deus”, afirma o estudioso e pesquisador Dílson Bento de Faria F. Lima, num artigo intitulado Satã e Cultura. “Isto já era postulado na ciência oculta dos antigos egípcios. Imhotep, o Grande Arquiteto, que se acreditava ter construído a Pirâmide de Quéops, e que legou ao mundo uma série de ensinamentos profundos, diz que o Diabo é Deus inverso (Diabolus inversus Deus est). Em algumas culturas, como em lendas búlgaras, conta-se que o Diabo é a sombra de Deus. Na Pérsia, temos como divindades criadas por Zervan, deus do tempo ilimitado, Ormudz e Arimã, o primeiro, deus do bem, e o segundo, do mal, os quais estão em luta antagônica de um ciclo de tempo.”
O recente (1975) Congresso de Bruxaria de Bogotá e, há mais tempo, o filme O Exorcista propuseram de novo a antiga questão da existência do Diabo, ou Demônio, e a luta tradicional do homem contra ele. Quem, por antonomásia, é o Demônio? Lúcifer, o rebelde perante Deus, derrotado pelos anjos fiéis conduzidos por Cristo, Filho de Deus, e arrojado ao abismo infernal, retorcendo-se eternamente de dor e de ira. Isso não está dito na Bíblia, mas sim, afirmado pela tradição e pela tragédia pré-humana, produzida pela teologia. Em certo sentido, afirma Emílio Radius, e isto a Bíblia diz, a primeira pessoa possessa do Demônio foi Eva, que sofreu a tentação da serpente demoníaca e não a venceu.
Fauno: inspiração demoníaca?
No Novo Testamento o Demônio tem muita importância, desde quando se atreve a ir ao deserto tentar Jesus Cristo, que ali se encontrava orando. É uma das mais misteriosas e desconcertantes páginas do Evangelho, em que o próprio Cristo exorciza, com uma calma que encerra ironia, com respostas similares às que depois daria aos fariseus. Os endemoniados são muito mais numerosos que no Evangelho.
Alguns desses possessos agitados pelo Diabo, segundo o texto sagrado, eram, de acordo com a ciência racionalista, epilépticos ou doentes de outros males. Mas Jesus Cristo fala freqüentemente do Diabo, de Satanás, do Príncipe do Mundo, como seu antagonista ou anticristo. Nos pais da Igreja não se encontra uma terminologia similar à que surge depois. Sua polêmica é contra os falsos deuses do paganismo, os ídolos surgidos de mãos humanas. A intenção é a de demonstrar a unicidade de Deus. Sobretudo nos pais menores, Tertuliano, Santo Agostinho, São Jerônimo. Para Satanás, eles atêm-se ao Evangelho, mostram-se cautos na interpretação. Ademais para os pais da Igreja, todos os pagãos são endemoniados e, por conseguinte, exorcizáveis.
Os doutores da Igreja estudam o Demônio mais sistematicamente, por isso tarda em formar-se a imagem bem definida, plástica, da pessoa. Essa imagem é característica do medievo que a pouco e pouco multiplica-se na arte, sobretudo na escultura, especialmente nos capitéis. Os diabos assediam as catedrais, aparecem no alto, penetram no templo. Deus consente que os fiéis sejam tentados por suas figuras, com o fim de vencerem a prova. As figuras demoníacas com o correr do tempo, tornam-se tipos únicos, como sucede freqüentemente quando não são representadas por animais ferozes, reais ou fantásticos, como os dragões. Em muitos casos são representados com asas de morcego ou de vampiro. Isso tudo culminaria na arte gótica, na qual não se sabe se existiriam mais anjos ou mais demônios.
A pintura faz maior alarde, na Itália e fora da Itália. O chamado mundo solar, mediterrâneo, apresenta um eclipse e pouco se diferencia do setentrião, embora este seja mais gótico. No que toca à literatura, é supérfluo citar as fontes de Dante e A Divina Comédia. O inferno de Dante recebeu influxos de todas as partes e, depois, com a sua potência sem igual, influiu por sua vez não somente nas letras como também nas artes figurativas e na música.
Ninguém como este florentino, tão espiritual e concreto, acreditou na existência do Diabo, sonhou com ele e diremos que o viu com seus próprios olhos. Os diabos de Dante são pessoas imediatamente reconhecíveis e muitas delas têm nome próprio. Muito foi dito e repetido que o canto mais vivo é o do inferno. No fundo do abismo está Lúcifer, rei ou imperador do mal, estreitamente rodeado pelos piores. Dante tem um profundo conhecimento do mal e não revela dúvidas sobre o autor deste Lúcifer, que é Satanás. As almas do purgatório lamentam-se ainda de suas culpas, das quais são finalmente salvas pela graça de Deus. Somente no Paraíso, mas não em todos os cantos, o Diabo é esquecido.
Lúcifer
No Renascimento, o Demônio tende a tomar uma forma agradável, ou pelo menos equívoca. E seus adoradores, divididos no século anterior, atrevem-se a unir-se em seitas chamadas dos satanistas, dedicadas à magia e à bruxaria, desafiando a fogueira. Tal demonomania (de adoradores do demônio e pessoas que o viam por toda a parte) durou até o século 17. Muitos dos acusados de diabolismo eram filosofantes, buscadores da pedra filosofal (com ela mudariam a pedra em ouro), feiticeiros, curandeiros, sacerdotes renegados, indivíduos mais loucos que ajuizados; escassas eram as distinções e grande o rigor.
Na arte antiga, anjos e geniozinhos tinham um ar de demônios assexuados, ou então demasiadamente sensuais. Em quadros e esculturas, de certa forma mostram-se entre o encantador e o burlesco. Tocam e cantam (onde, para quê?), dançam, distendem as asas como leques, embora só tenham deliciosos projetos de asas. Mesmo a verdadeira ciência, ao aparecer, tinha algo de demoníaco. Seus instrumentos primitivos parecem ferramentas sinistras; seus laboratórios rudimentares, antecâmaras do inferno.
Entretanto os protestantes, ou melhor, os luteranos mantêm o Demônio dentro da doutrina ortodoxa. Começando pelo próprio Lutero. Não assim Calvino e os calvinistas; estes nunca se explicaram claramente. Outros protestantes inclinam-se para o racionalismo e por isso só vêem no Demônio e no inferno símbolos admonitórios.
O iluminismo em suas variantes considera o Demônio uma lenda útil, principalmente para os sacerdotes, ou começa a caçoar dele abertamente. Inclinado ao ateísmo, como poderia admitir a existência de um deus que não fosse um vago espírito, sim ou não, autor do universo?
Depois do Concílio de Trento que assinalou o começo da Contra-Reforma ou Reforma Católica, a Igreja reforçou também sua concepção das culpas, dos pecados, das penas temporais ou eternas, como conseqüência da responsabilidade humana, das instigações diabólicas, do Diabo e dos condenados. Os jesuítas, a nova milícia da Igreja, tinham rápida decisão e uma resposta para cada pergunta. Entretanto, não eram demasiadamente propensos à inquisição, tampouco foram os sacerdotes que mais inspiraram terror com a ameaça do inferno; porém, com as exceções de sempre. O choque mais grave se produziu entre o iluminismo e o jesuitismo; mas não devido à questão do Demônio.

De monstro a senhor

O Demônio já evoluía, de monstro a senhor do mal não desprovido de uma dignidade própria, sombria, porém indiscutível, de príncipe dos anjos caídos. Era um sábio cheio de aberrações, mas era sábio. Torna-se menos lôbrego o inferno, menos almas emaranhadas, atrocidades e sevícias mais conhecidas na Terra. Por pouco não erro o inferno às vezes representado como uma “quermesse” de ferozes festejos. E o Diabo assumia figura humana e não de bode.
Porém as crianças educadas no medo ao Demônio, à noite, antes de dormir, olhavam sob a cama para certificarem-se de que ele não estava ali em forma de cão, como nós mesmos fazíamos há sessenta anos.
Os inimigos heróicos do Diabo eram os santos. Continuamente tentados, não cansavam nunca de lutar contra o maligno. As vidas dos santos estão cheias dessas lutas. O Demônio, esgotado de dar perversos conselhos, materializava-se e assestava golpes duros e reais, aos quais os atletas de Deus respondiam com outros tantos. Por último o Diabo saía perdendo e abandonava o lugar, lançando suas imprecações. A presa mais ambicionada escapuliu uma vez mais. Não era raro que a luta durasse a noite inteira. O santo não conciliava o sono e dedicava-se a orar para dar graças ao Senhor por tê-lo tornado forte no combate.
Dessa maneira os santos não se declaravam (mas declaram-se) pecadores, grandes pecadores indignos da ajuda de Deus. As tentações de Santo Antônio são famosas na iconografia, mesmo as que demonstram serem mulheres procazes, das que se serve o demônio para atrair o herói da religião. Menos notável mas muito mais grave, a tentação do santo padre de Ars, ainda hoje venerado. O Demônio tentava-o nas horas livres, que eram poucas, pouquíssimas, porque passava o dia todo e parte da noite confessando, pois era um confessor de grande renome. Alimentava-se somente de batatas. Fazia cozinhar o suficiente para uma semana.

Nomes grotescos

Por isso o Diabo escarnecia dele e pregava-lhe peças de todo gênero e espécie. Imperturbável o padre de Ars, o papa-batatas, como o chamava o Demônio, resistia e não cedia de maneira alguma. E punha-lhe também nomes grotescos. Se era obrigado a chegar às vias de fato, não vacilava um momento. Com ele, o maligno se saía sempre mal. No pequeno aposento da paróquia ouviam-se assobios, estrondos, gritos. Além das disputas orais, lutavam corpo a corpo. Reduzido a um verdadeiro farrapo, Satã necessitava recobrar alento antes de voltar à luta; mas não desistia nunca. Naturalmente com relação às tentações, o padre de Ars nada sabia sobre os demais confessores. Não o sabendo, o Diabo doutrinava-o sempre melhor. Sobre as tentações dos santos se poderia fazer uma volumosa antologia.
Entretanto propagava-se o satanismo. Não é com certeza necessário citar o Hino a Satã, de Carducci: “Salve, oh Satanás, oh rebelião, oh! Força vencedora da razão”...
Há satanismo em todo o Fausto de Goethe. Nesta sublime tragicomédia, mais humana que divina, Mefistófoles, o Diabo, é um elegante senhor de idade ou de meia-idade, que se torna mestre de Fausto, este rejuvenescido por ele de maneira prodigiosa.

O Satanás de Milton


Milton, Paradise Lost, Lucifer is Cast Out of Heaven by Gustave Doré.
Mestre, guia (espécie de Virgílio ao contrário), inventor de diversões, companheiro de crápula, salvador nos perigos. Douto, erudito, de inteligência fulgurante, engenhoso, tenaz apesar dos fracassos, extremamente despreocupado, progressista. O título não diz, mas é a personagem central do poema. Antes de Goethe, um poeta inglês, Milton, teve em O Paraíso Perdido uma visão muito diferente de Satanás. A figura de Lúcifer, especialmente na primeira parte do poema, é de um inaudito trabalho de ourives. A travessia do espaço que separa o inferno, da Terra, é o mais sombrio, a viagem mais miserável que se pode imaginar. Suas asas são as asas de um navio-fantasma. Sua respiração é a própria respiração do mal, que quer corromper o homem recém-criado; mas em sua infinita presunção desconfia das próprias forças. Daí a angústia de que está saturado e que o afunda naquele mundo caótico.
O Lúcifer de Milton é também o retrocesso, a condenação ao desastre, um abjeto e estúpido desafio a Deus. Jamais sairá do inferno. O inferno é o lugar dele. Que diferença entre o Lúcifer de Milton e o Lúcifer precursor da época das luzes, do saber divorciado da “superstição”, da construção de ideologias racionalistas, tão altas como a Torre de Babel.
Agora um filme veio desordenar as cartas do baralho. Veio projetar de novo sobre o mundo a sombra do Diabo, mais eficazmente do que os velhos religiosos que continuam mostrando o fogo inextinguível do inferno. É presumível que o de O Exorcista seja uma breve labareda.
Em todo caso o problema do mal só foi resolvido por hipóteses, pela ciência. Só a Igreja, baseando-se no Evangelho, resolveu-o para os fiéis e para aqueles que de coração estudam o cristianismo. A igreja não deu somente uma definição própria, mas indica o autor e não depois de um enredo, de induções e deduções como num romance policial.
Autor: André Sabóia.

Artigo publicado originalmente por volta de 1975, através da revista Grandes Acontecimentos da História. A publicação foi registrada no Serviço de Censura Federal sob o nº 405.P.209/73

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