Esta entrevista foi publicada na Isaac Asimov Magazine #4 – edição brasileira de 1990. Como não pude usar o scanner, digitei tudo e revisei para evitar erros. Leiam e descubram o que esperam de nós (escritores) no exterior, principalmente nos países de língua inglesa. As opiniões são válidas até os dias atuais e servem como incentivo e inspiração a todos nós, independentemente da área de atuação na literatura. – Franz Lima.
MINHA EXPERIÊNCIA NO BRASIL – Orson Scott Card
Trechos de uma entrevista concedida a Roberto de Sousa Causo, editor do Anuário Brasileiro de Ficção Científica, por Orson Scott Card, autor do livro O Segredo do Abismo (The Abyss), publicado pela editora Record e inspirado no filme homônimo de James Cameron. Orson Scott Card é, no momento, um dos mais populares escritores de FC nos Estados Unidos.
Roberto de Sousa Causo (RSC) – Sr. Card, muitos brasileiros não sabem que o senhor viveu dois anos no Brasil, de 1972 a 1973, antes de vender sua primeira história, o que viria a ocorrer em 1976. Um outro missionário, natural de Oregon, me disse que se aprende mais em dois anos de missão do que em igual tempo passado em qualquer universidade do mundo. Sem dúvida o contato com pessoas de todas as origens, classes e opiniões parece ser o laboratório ideal para um escritor. Que influência tiveram essa passagem pelo Brasil e esse contato com o povo brasileiro na sua formação específica como escritor de FC?
Orson Scott Card (OSC) – Toda história de ficção científica se passa em um cenário diferente da realidade do momento. Entretanto, muitos autores de ficção científica nunca tiveram a oportunidade de ser “estranhos numa terra estranha”. O simples fato de viver em um país diferente daquele em que nasci me proporcionou uma dose dupla de educação: primeiro, porque me adaptei à língua, costumes e modo de pensar de outro povo até me sentir tão à vontade no Brasil como em minha terra natal; segundo, porque ao voltar aos Estados Unidos foi meu próprio país que me pareceu estranho.
Em outras palavras: viver em um país estrangeiro permite que um autor de ficção científica separe em sua mente os elementos que são características humanas dos que são apenas costumes locais. Os brasileiros fazem muitas coisas de forma diferente dos americanos, e alguns dos meus companheiros missionários jamais chegaram a compreender que isso não significava que os brasileiros estivessem errados, apenas que existem várias formas de fazer o que é certo. Muitos de nós nos apaixonamos pela maneira de viver dos brasileiros. Como os Estados Unidos, o Brasil tem problemas, e existem setores em que o povo brasileiro não é melhor que o povo norte-americano. Somos todos imperfeitos. Mas é exatamente por isso que precisamos de ficção… para mostrar nossas imperfeições e nos dar uma imagem clara do que podem ser a nobreza e a grandeza.
Isso é o que aprendi no Brasil em termos gerais. Especificamente, é claro, usei a língua e os costumes do Brasil em muitas das minhas obras, como uma maneira de forçar meus leitores norte-americanos a perceber que o futuro não será povoado exclusivamente por nativos do Kansas. Um dos defeitos mais gritantes da ficção científica que se faz hoje em dia é o número incrível de histórias que parecem sugerir que toda a raça humana será composta por norte-americanos daqui a cinqüenta anos. Que bobagem! O futuro não pertencerá a países decadentes como os Estados Unidos, que chegaram ao apogeu em 1920, ou mesmo o Japão, que está passando pelo auge no momento presente (1990). O futuro pertencerá, isso sim, a países em desenvolvimento, como o Brasil, o México, a Nigéria, a Polônia, a Hungria, e principalmente a China. De modo que é absurdo que os autores de ficção científica, que tem obrigação de imaginar todas as possibilidades para a raça humana no futuro, escrevam história após história nas quais todos os personagens do futuro agem, falam e pensam como norte-americanos.
Meus anos no Brasil me ajudaram a evitar essa tendência em minhas obras, embora eu me apresse a admitir que minhas histórias contêm uma certa dose de preconceito cultural. Afinal, sou norte-americano, e mesmo que possa evitar todos os preconceitos culturais que chegam à minha consciência, existem certamente mil outros preconceitos inconscientes, que aparecem no meu trabalho sem que eu me dê conta disso. É muito importante que os autores de ficção científica que não nasceram nos Estados Unidos situem muitas ou mesmo a maioria de suas histórias em um futuro criado por eles próprios, sem nenhuma influência da cultura norte-americana, exatamente porque, fazendo assim, estarão contribuindo para alargar os horizontes da ficção científica. Se vocês que escrevem ficção científica no Brasil quiserem dar um grande presente ao público norte-americano (que continua a ser o maior público deste planeta), permitam-nos experimentar a cultura de vocês nas histórias que escreverem, mesmo que se passem em tempos e lugares muito distantes da Terra do final do século XX.
RSC – No Brasil, hoje, ocorre uma discussão em torno da idéia de que os autores nacionais deveriam tentar se aproximar mais da realidade brasileira, descobrindo a ficção científica pelo modo de ver do brasileiro e vice-versa; ver a nossa realidade pela ótica da ficção científica. A corrente opositora argumenta que o caráter universalista da FC não permite esse tipo de proposta. Como o senhor se posicionaria? Através de sua experiência aqui, acredita que a cultura brasileira tem algo a acrescentar à ficção científica como gênero?
OSC – Já falei sobre o assunto em minha resposta anterior, mas gostaria de fazer mais algumas observações. A ficção científica é a maior revolução que ocorreu na literatura mundial desde a invenção do romance no século XVIII, mas até recentemente quase toda a ficção científica era escrita em inglês, e mais particularmente nos Estados Unidos. O resultado é que quando você lê ficção científica, a maior parte das vezes é ficção científica norte-americana e, se não tomar cuidado, acabará pensando que certos aspectos norte-americanos da FC são parte de qualquer obra desse gênero.
Na verdade, é exatamente o oposto. Para a ficção científica amadurecer, ela precisa se libertar de suas raízes nos Estados Unidos e Inglaterra. Isso é muito difícil para os autores norte-americanos e ingleses, mas deve ser fácil para vocês. De certo modo, vocês não podem deixar de se afastar de nós, porque, ao escreverem histórias de ficção científica, incluem necessariamente muitos aspectos da cultura brasileira, mesmo que não tenham consciência disso e que não situem deliberadamente a história em um ambiente brasileiro. Entretanto, acho importante que vocês localizem muitas, ou talvez a maioria, de suas histórias em um contexto brasileiro, por quatro motivos.
Primeiro, porque isso será bom para a ficção científica como um todo, ajudando-a a ampliar seus horizontes.
Segundo, porque é mais fácil escrever e ler histórias de ficção científica nas quais a sociedade do futuro difere apenas em alguns aspectos; por que aumentar a dificuldade do leitor brasileiro apresentando-lhe um cenário em que tudo é diferente da realidade a que está acostumado?
Terceiro, porque o uso de ambientes brasileiros, por estranho que possa parecer, facilitará a venda desses trabalhos nos Estados Unidos. No momento, o público norte-americano de FC está despertando para a idéia de que a ficção científica é uma literatura sem fronteiras. O fato de você ser um escritor estrangeiro ambientando as histórias em sua terra natal tornará essas histórias mais interessantes para o público norte-americano.
Quarto, porque é vital para qualquer comunidade literária adquirir uma personalidade própria. Se vocês tentarem escrever FC ignorando as raízes nacionais, acabarão provavelmente imitando a FC norte-americana. Por outro lado, se incluírem abertamente a cultura local, o brasileirismo resultante será uma revolução dentro da ficção científica, da mesma forma como a ficção científica praticada por vocês será uma revolução dentro da literatura brasileira! Quando a FC começou a existir nos Estados Unidos, nas décadas de 1930 e 1940, ela era orgulhosamente, quase arrogantemente, norte-americana. Isso foi parte do que nos deu forças para lutar. Vocês também têm muito a ganhar injetando um forte sentimento nacionalista na FC que fizerem.
Isso não quer dizer que a FC brasileira se dedique exclusivamente a louvar o Brasil. O trabalho de um contador de histórias é ajudar seu povo a crescer e a mudar. Em outras palavras, enquanto às vezes vocês usarão o cenário para mostrar que se orgulham de ser brasileiros, outras vezes o usarão para satirizar os erros que observam no país. Charles Dickens não apenas fez os ingleses se orgulharem de sua pátria, mas também os deixou envergonhados por suas falhas; Mark Twain e Harriet Beecher Stowe fizeram o mesmo com o povo dos Estados Unidos. Como, porém, vocês podem propor mudanças no Brasil se as histórias que escrevem não estão claramente contidas na cultura brasileira, se vocês não propõem questões tipicamente brasileiras?
O Brasil é um país que a qualquer momento terá um impacto cultural profundo no resto do mundo. A música brasileira está ficando cada vez mais popular nos Estados Unidos (pelo menos posso comprar vários CD brasileiros em qualquer cidade grande!); que isso seja acompanhado pela literatura de vocês… literatura de boa qualidade… que nos revele a cultura brasileira em toda a sua grandeza. Não estou exagerando quando afirmo que vocês têm a responsabilidade de ser os embaixadores do Brasil no resto do mundo, ao mesmo tempo que devem ser profetas dentro de sua pátria, apontando erros e clamando por mudanças.
Depois de dizer isso, naturalmente, devo também dizer que um autor deve escrever apenas sobre as coisas que gosta e em que acredita. Assim, se você escreve FC e não se interessa por histórias passadas no Brasil, não deve usar cenários brasileiros apenas porque um escritor norte-americano disse que devia fazê-lo. Escreva apenas sobre o que lhe agrada.
Mesmo assim, é inegável que os autores brasileiros de FC com maior probabilidade de sucesso, tanto no país como no exterior, são os que escrevem histórias que se passam no contexto da cultura brasileira… seja na Terra (no futuro próximo ou no passado), seja em algum outro planeta, para onde os colonos brasileiros levaram o gosto pelo samba, feijoada e cafezinho!
RSC – Para terminar, gostaria que dissesse para nossos leitores quais os dez nomes mais importantes da FC norte-americana de hoje.
OSC – Em minha opinião são: Bruce Sterling, Gene R. Wolfe, Lisa Goldstein, Charles de Lint, Karen Joy Fowler, John Kessel, Tim Powers, M.J. Engh, Lois McMaster Bujold e Lewis Shiner. Não há dúvida de que deixei de fora muita gente boa, como não há dúvida de que, se fosse escrever esta lista na semana que vem, ela seria diferente. Mas entre os jovens autores cujo trabalho está tendo o maior impacto no campo no momento atual, estes são os dez que eu escolheria.
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