GENGIS
KHAN: “CONDOTTIERE” OU DEMÔNIO? *
* Condottiere é o que se denominou como chefe de bandoleiros ou soldados mercenários.
Esta matéria foi publicada, originalmente, na revista "Grandes acontecimentos da História" - em pleno periodo ditatorial de nosso país na década de 1970 e não consta o nome de seu autor nos créditos. Este é o segundo episódio de três da vida e morte de Genghis Khan, o maior conquistador que a humanidade já teve. O terceiro episódio será composto por uma resenha dos três primeiros livros da série "O Conquistador" de Conn Iggulden, onde as aventuras e desventuras de Khan são descritas com requinte de detalhes e grande embasamento histórico.
Seu
nome verdadeiro era Cingis Quan. Viveu de 1167 a 1227. Sua imagem é até hoje
imprecisa. O grande príncipe mongol teve uma mocidade cheia de misérias,
sofrimentos, humilhações e vergonha. Cresceu entre lutas tribais e as piores
brigas de família. Chamavam-no também Temujin, e ele revelou desde cedo seus
dotes de ambição, crueldade e magnanimidade ao mesmo tempo. Uma personalidade
complexa, que justifica as interpretações mais contraditórias. Há quem, até hoje,
o tome por modelo.
Genghis
Khan um condottiero ou um demônio?
Vingativo,
astuto, mas corajoso, fez sempre uso violento do poder. Com vinte anos a
primeira vitória: os chefes Tayiciud são fervidos vivos. No entanto, uma
delicadeza selvagem acompanha o seu mito.
Entre
o fim do século XIX e o início do século XX, um homem honesto, sagaz e brando,
que havia alcançado o importante cargo de presidente do Senado de Dresde,
Daniel Paulo Schreber, foi acometido por uma grande loucura: começou a
apavorar-se com catástrofes cósmicas e a alucinar-se com terríveis visões. Uma
delas consistia no próximo fim da raça ariana, que não cumprira sua
responsabilidade ético-político-religiosa. A única esperança podia ainda
manifestar-se na vinda de um “príncipe mongol”, no qual ele proximamente se
reencarnaria, conduzindo a humanidade a salvo.
Este
“príncipe mongol” dos delírios e fantasias de Schreber era Genghis Khan.
Por
que na mente conturbada do juiz Schreber apareceu a imagem do conquistador
mongol? Por que ele percebeu a restauração da ordem no mundo como uma
purificação rápida e violenta, através da morte?
Por
que reevocamos a trágica visão apocalíptica do senatspresident encerrado na
sombra irrevogável da sua loucura? À parte o fato interessante que do caso
Schreber Freud deduziu a sua teoria da paranóia, quisemos oferecer a imagem de
Genghis Khan que estava e ainda está impressa na consciência coletiva. Ele é um
destruidor: metaforicamente alimenta-se dos corpos de seus inimigos; seu
emblema totêmico é o logo. Além do mais é invencível: quando um de seus mais
velhos e fiéis amigos lhe pergunta: “Tu és o soberano e te chamam de herói.
Qual é o sinal de conquista e vitória que trazes na mão?”, o príncipe responde:
“Antes de subir ao trono do Império, andava a cavalo por uma estrada. Encontrei
seis homens que tramavam uma emboscada na passagem de uma ponte e queriam a
minha vida. Quando cheguei perto, tirei minha espada e enfrentei-os. Eles me
lançaram uma nuvem de flechas mas nenhuma me acertou. Matei-os todos com a
espada e cavalguei para longe, ileso. Na volta, cheguei novamente ao lugar em
que tinha vencido os seis homens. Seus cavalos vagavam por ali, sem donos.
Levei-os todos comigo”.
Agora
a pergunta é esta: qual a verdade nesta crua imagem do grande príncipe mongol?
E para respondê-la precisamos voltar à existência histórica de Genghis Khan, ou
melhor Cinggis Qan (1167-1227).
O
seu verdadeiro nome era Temujin: “o primogênito entre os cinco filhos de
Yesugai, o segundo chefe de um grupo de mongóis, vassalos do Kereit”, que com
menos de dez anos ficou órfão de pai. Teve que se arranjar. Sua adolescência
foi cheia de misérias, sofrimentos e humilhações. Foi até escorraçado, junto
com sua mãe Höellün, pelo grupo de nômades esfarrapados que foram chefiados por
seu pai. Cresceu entre lutas tribais, brigas de família, vicissitudes que
tinham mais sabor de banditismo do que de atos guerreiros. Mas Temujin era um
rapaz orgulhoso, vingativo, que a própria crueldade dos atos a que era
submetido, aperfeiçoava, aguçando seus dotes inatos de sagacidade, de ambição,
de coragem cruel e magnânima ao mesmo tempo. Tinha pouco mais de vinte anos
quando conseguiu sua primeira clamorosa vitória. Chefiando 13 mil homens venceu
as forças imponentes de uma grande tribo rival: os Tayiciud, que algum tempo
antes o tinham aprisionado. A vingança sobre aquela gente foi atroz: os chefes
foram fervidos vivos, e os outros, inclusive mulheres e crianças, decepados. De um dia para o outro Temujin ficou famoso e
suas hordas mongólicas tornaram-se o terror dos inimigos. Agora ele podia
tratar de igual para igual os mais poderosos condotierri nômades: o Van Qan dos Kereit e o destemido guerreiro
Jamuqa. Confirmava-se a exclamação profética de sua mãe Höellün, quando ele
nasceu: “Não foi à toa que veio à luz saindo com violência de meu ventre,
apertando na mão um coágulo de sangue! Ele é como um qablan, pássaro que se atira contra as rochas; como o demônio
Manggus, que engole viva a sua vítima; como o lobo que surge de improviso na tempestade;
como o ganso negro; como o tigre que não hesita em aferrar a presa; como o
mastim que ataca...” Temujin aliou-se a Van Qan e junto com ele realizou
grandes proezas de grande importância. Mas as relações entre os dois não eram
fáceis e logo deterioraram. Até que um dia Van Qan e Jamuqa decidiram
capturá-lo. Mas Temujin foi avisado a tempo e fugiu “abandonando tudo que
possuía de pesado”. Dirigiu-se às montanhas Mao-undur e deixou atrás
tropas de cobertura que logo avistaram uma poeira ao longe; os ex-aliados,
agora inimigos, se aproximavam. Após uma série de manobras, à espera de um
momento propício, Genghis Khan teve um pressentimento de que algo acontecia nas
fileiras adversárias. Sigamos a descrição sobre a História Secreta dos Mongóis, texto muito antigo dedicado à vida e
proezas do grande príncipe. Narra
a história: Qariudar e Caqurqan disseram então a Cinggis Qan: “O Van Qan está
folgando na maior despreocupação em sua tenda dourada, e se diverte. Marchando dia
e noite podemos surpreendê-lo com um ataque imprevisto”. Aprovada a decisão
Cinggis Qan mandou uma divisão na frente. Cavalgando dia e noite, chegaram ao
campo de Van Qan, no vale de Jerqabciqai. Combateu-se durante três dias e três
noites. Enfim, cercado por todos os lados, o inimigo rendeu-se. Não se entendeu
como o Van Qan conseguiu fugir durante a noite. Foi obra de um Jigin, conhecido
por sua bravura, Qadag-Bagatur. Vencido, este apresentou-se a Cinggis Qan e
disse: “Combatemos três dias e três noites. Vendo o meu soberano perdido,
pensei: é possível prendê-lo e condená-lo à morte? Não. Combaterei ainda para
dar-lhe a possibilidade de fugir ao seco e salvar-se. Agora, se tu me condenares à morte, morrerei; se me perdoares te servirei".Cinggis Qan gostou destas palavras e dignou-se a responder-lhe assim: "Não é talvez um verdadeiro guerreiro o homem que não abandona seu soberano, mas lhe dá a possibilidade de fugir e salvar a sua vida? Este é um homem digno de amizade". E não permitiu que fosse sentenciado... Mas o fim tinha apenas sido adiado. Durante a fuga o Van Qan, irreconhecível nas roupas com que se disfarçara, foi assassinado por um guerreiro Naiman.
Nesse ínterim, Jamuqa, no passado "anda", ou seja, irmão de sangue de Temujin o que torna mais patético e trágico o acontecimento, havia reunido à sua volta os mongóis da sua parte, a tribo dos Kereit e os Naiman. Mas o exército de Genghis Khan já tinha invadido toda a estepe, acendendo "fogueiras mais numerosas que as estrelas". Jamuqa e os Naiman procuraram refúgio nas montanhas, mas durante a noite começaram a brigar, estrangulando-se uns aos outros. Renderam-se todos os que tinham acompanhado Jamuqa: os Jaradan, os Qatagin, os Saljiud, os Dorben, os Tayiciud e os Onggirad.
Corria o ano do Rato (1204):
no outono o Gran-Mogol destruiu os últimos Merkit e Jamuqa ficou sem nenhum
apoio. À mercê de poucos e traiçoeiros companheiros foi entregue a Cinggis Qan,
que condenou à morte os traidores do “irmão de sangue”. Quando Jamuqa soube,
exclamou: “O meu amigo tem uma mãe sábia e é um valoroso de nascença. A glória
de seu nome difundiu-se no mundo inteiro, do nascer ao pôr do sol. Os seus
irmãos têm talento e agora têm uma guarda de 73 örlug e 73 corcéis. Eis por que
me superou. Eis como me venceu. Concede-me
uma graça, meu “anda”, despede-te logo de mim, dando paz ao teu coração. Se for
possível, meu amigo, quando me fizeres justiça, que seja sem derramamento de
sangue. Quando restar morto na terra, nossa mãe suprema, o meu corpo inanimado
será até a eternidade protetor da tua descendência. Eu te prometo, levantando
preces. Desde que nasci a minha vida foi solitária e agora sou vencido pela tua
sorte e da tua numerosa família. Não esqueças minhas palavras: agora, deixa que
eu vá o mais depressa possível”. Após alguma hesitação foi-lhe concedida a
morte.
No ano da Pantera
(1206) quando Cinggis Qan achou que havia pacificado os “povos que vivem dentro
das paredes de feltro”, ou seja, as tribos da Ásia Oriental, realizou-se uma
grande assembléia onde os mongóis, orgulhosos e entusiasmados com seu jovem
chefe, levantaram o “estandarte branco das nove caudas de cavalo”, e o
proclamaram soberano. Cinggis Qan quis junto de si, com o título de quiliarcas,
os homens que “junto a mim trabalharam para construir o Estado”. O novo rei
agora podia mirar bem mais longe dos confins de uma Mongólia unida, onde tribos
mongólicas e turcas lhe davam esquadrões de milhares de cavaleiros, uma força
de ataque que naquela época não conhecia rivais. Cai o reino de Hsia-hsia;
caem, depois de uma luta duríssima, os Jürchen da Mongólia; cai uma parte da
Manchúria. Em 1251 os homens de Cinggis Qan invadiram a China ao sul da “Grande
Muralha” (Maraini) e se apoderaram da “Capital do Norte”, ou seja, Pequim.
Com 20 mil cavaleiros
que tudo arrastavam na sua irresistível e feroz rapidez, ocuparam o Casaquistão
e o Khwaremz. Bukhara e Samarcanda foram aprisionadas, com outras inúmeras
cidades. Os georgianos foram vencidos em Tiflis (1221) e os príncipes da Rússia
Meridional em Kalka (1223). O exército mongol reuniu-se de novo ao norte do Mar de Aral, Cinggis Qan e os seus voltaram triunfantes. Mas pouco tempo depois o Qan recomeçou uma nova companha porque o reino de Hsia-hsia tinha se rebelado. Durante esta campanha, morreu.
Era o ano do Javali
(1227) e duas estações antes havia estabelecido sua residência nos palácios
reais da Floresta Negra de Tuula. Morreu sem lamentos (porque já havia provado
as piores dores carnais), circundado de um incomensurável poder, distribuindo
bens aos seus seguidores. O rapazinho, tão cedo órfão, perseguido pelas
vinganças de parentes que haviam aterrorizado sua adolescência, tinha criado,
num tempo relativamente curto, um império imenso. O príncipe mongol confirmava
a predição materna: “Não foi à toa que veio à luz saindo com violência do meu
ventre...”
Façamos um retrospecto
e voltemos à pergunta inicial: ele merece a fama de “flagelo de Deus” que os
séculos lhe deram? Sem dúvida, Genghis Khan apossou-se do poder com a força e
dela fez uso violento, muitas vezes arbitrário. Mas quem lê os testemunhos
sobre sua vida e obra não pode livrar-se da impressão de que os atos que
cometia eram mais o fruto de uma índole selvagem e precocemente endurecida que
os de uma crueldade fria e deliberada.
A epopéia de
Genghis Khan não nasce e se desenvolve nas sutis intrigas de corte, nem dentro
de castelos silenciosos, longas marchas, cavalgadas furiosas, de ciladas pelos
campos, de espertezas e violências feitas, na maioria das vezes, por
necessidade. Ele e os seus foram certamente cruéis: mas as suas hordas de
brutalidade estavam impregnadas do espírito nômade que, iletrado, selvagem,
inculto, que se consegue organizar desprende uma força colossal, de caráter
quase animalesco. Nas aventuras de Temujin acham-se os sinais de uma natureza
que resta fiel a si própria, ainda não de todo humanizada. Por outro lado, a
sua enorme força destruidora (Bukhara, Samarcanda e Balkh foram reduzidas a
cinzas, cheias de mortos: Merv não se reergueu mais) era compensada por uma
capacidade de pacificação e organização. No imenso espaço conquistado por seus
arqueiros a cavalo, ele fez surgir quase do nada um Estado, no qual, nômades e
agricultores, pastores e cidadãos, mongóis, turcos, persas, russos, muçulmanos,
budistas, cristãos, miseráveis da estepe e filósofos das academias puderam
viver em paz e harmonia entre si, por mais de um século. Enfim, Genghis Khan
não transmite a ferocidade já “culta” de um Ivan, o Terrível, ou de um Pedro, o
Grande. Ele é filho da estepe: nos mitos que acompanham seu nome não está nem
mesmo ausente um gesto gentil e poético. Quando agradece por ter escapado da
morte nas mãos dos Merkit, refugiando-se no monte Burqan, à montanha transforma-se,
em suas palavras, quase que em uma coisa viva: “No Monte Burqan salvei a minha
vida, uma vida igual a de um piolho. O Burqan me defendeu, como um escudo, a
vida, uma vida como a de uma andorinha. Senti um grande terror. Inclinemo-nos,
portanto, todas as manhãs, subindo por este monte de gatinhas, e levantemos
graças!”
E no rosto
hirsuto do lobo da estepe, que desnudando o peito se inclinou nove vezes diante
do sol, brilharam as gotas da aspersão ritual, como se fossem lágrimas.
ESSE REI
ResponderExcluirFOI O CARA.....
O título de maior conquistador da História da humanidade não surgiu à toa. Ele é o cara...
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