Fonte: Estadão
De Mozart aos mestres do jazz, especialista faz um ambicioso retrato do instrumento
Não há como negar. O reinado do piano, que já dura mais de três séculos, não dá o menor sinal de declínio. Ao contrário, continua dominando a vida musical. Um rápido olhar sobre o mundo erudito comprova que em 2012 os pianistas novamente serão maioria entre as atrações internacionais, incluindo raros brasileiros de circulação também internacional. Doze, em média uma superstar para cada mês do ano. Sociedade de Cultura Artística abre alas com os nomes mais reluzentes: o chinês Lang Lang e o russo Evgeny Kissin. O Mozarteum traz o alemão Rudolf Buchbinder. E a Osesp escalou um time inteiro de virtuoses como David Fray, Alexandre Tharaud, Andras Schiff, Maria João Pires e Nelson Freire. No domínio das músicas populares, suas várias versões digitais e o tradicional instrumento acústico também são dominantes em shows de todos os matizes.
Por isso, é ao mesmo tempo fácil e dificílimo explicar as razões de reinado tão longo. Stuart Isacoff é o mais recente pesquisador a tentar desvendar este mistério fascinante, no recém-lançado A Natural History of the Piano: The Instrument, the Music, the Musicians - from Mozart to Modern Jazz and Everything in Between. E o mais atrevido também, já que quer abraçá-lo inteiro, de Mozart e Liszt a Art Tatum, de Vladimir Horowitz a Bill Evans, de Sviatoslav Richter a Cecil Taylor. Deixa isso claro, como se vê, desde o título e, em seguida, já nas primeiras linhas: "Este livro explora a história do piano: seus intérpretes, compositores e inventores, professores e alunos, mecenas, críticos e empresários. Juntos, eles moldaram a fascinante história do mais importante instrumento jamais criado".
São quase 400 páginas, mas mesmo assim, na medida em que amplia
demais o seu tema, Isacoff acaba sendo necessariamente superficial em
vários momentos. Um exemplo acachapante. Em 45 linhas, esgota a tríade
vienense Schoenberg-Berg-Webern. Mas se esparrama em várias páginas
lambuzando-se com as pesquisas sinestésicas de Scriabin, que chegou a
mandar construir um piano de cores e outro de cheiros, imaginem. Por
meio do acorde místico de Scriabin, construído em intervalos de quarta,
pula para Bill Evans e Miles Davis no célebre Kind of Blue, de
1959, um verdadeiro "abre-te Sésamo", segundo Herbie Hancock, do jazz
moderno. "Evans foi o porta-bandeira desta revolução refinada", escreve.
"Levava músicas de Ravel e Debussy para Miles."
Felizmente, porém, são poucas as generalidades e muitas as sacadas
inteligentes. O livro exibe linguagem deliciosa, combina informações
corretas com fatos e detalhes inusitados. É um reflexo do autor,
ex-editor da revista Piano Today e ele mesmo pianista eclético.
Isacoff é daqueles pesquisadores que ficam nas franjas do mundo
acadêmico e portanto são mais informais.
Sua frasqueira recheada de sacadas começa com Franz Liszt, o inventor
da fórmula do recital de piano, até hoje matadora nas salas de concerto
do mundo inteiro. Ele lembra do poeta alemão Heinrich Heine. Ferino,
diz Isacoff, "chama Liszt de ‘Átila, o flagelo de Deus’. As plateias,
diz o poeta alemão que adotou Paris como sua cidade preferencial,
deveriam ter piedade dos pianos, que tremem quando Liszt se aproxima
deles. Eles sabem que vão se contorcer, sangrar e gritar debaixo das
mãos dele. ‘A sociedade protetora dos animais deveria investigar isso’,
conclui o poeta-crítico".
Humor não é tudo, mas que ajuda a ampliar o público interessado pelo
tema, isso ajuda. Vejam como ele descreve o parto do instrumento. "O
piano nasceu pela conjunção entre um quase anônimo lutiê, Bartolomeo
Cristofori, e um príncipe dissoluto, Ferdinando de Médici, da Toscana.
Eles se encontraram por acaso no carnaval de Veneza em 1668, quando o
príncipe acabara de perder seu lutiê e afinador de seus mais de 40
cravos, e Cristofori foi contratado para cuidar deles em Florença."

Já no fim do século 18, o piano conquistara rapidamente a nobreza de
modo irreversível. Mais da metade dos instrumentos confiscados dos
palácios dos nobres mortos ou exilados na Revolução Francesa era de
pianos, e muitos dividiam espaço com os cravos. "Um balanço dos itens
confiscados dá conta de que os cravos foram construídos antes de 1780; e
os pianos a partir desta data."
No século 19, o piano afirmou-se como instrumento rei. Era o único
capaz de substituir uma orquestra e trazer a música sinfônica, em
reduções, para as salas das famílias de classe média. Popularíssimo,
provocou uma verdadeira revolução industrial: na Londres de 1850, havia
200 fabricantes de piano; 21 anos depois, contabilizavam-se no país 400
mil pianos (números de Isacoff). Ao mesmo tempo, pululavam versões
exóticas, como o piano-estante, patenteado por William Stodart em 1795
(Haydn, que estava em Londres naquele ano, tocou nele e gostou do
instrumento); o piano-girafa e o piano-cama (na linha do sofá-cama, de
Charles Hess, EUA, 1866). Isacoff registra ainda os cômicos
"pianogatos", com animais de vários tamanhos que são golpeados com os
marteletes, italiano, de 1892; e até o porcoforte, em que os gatos são
substituídos por porcos.
Nessa altura, dá vontade de largar o livro, pela gratuidade das
informações. Mas Isacoff muda rapidamente o registro, já que não faz uma
linha cronológica linear. Anota que os concursos internacionais de
piano explodiram nos últimos 70 anos: "Em 1945 havia só 5
internacionais; em 1990, eles eram 114. Hoje são 750". Ou seja, ganhar
concurso já não alavanca carreira de ninguém.
Um dos acertos do livro é o modo como o autor posiciona os pianistas
na vida musical de hoje, a partir de episódio entre Igor Stravinski e
Arthur Rubinstein. O primeiro dedicou sua Piano Rag Music ao segundo,
mas Rubinstein recusou-se a tocá-la. "Estou orgulhoso pela dedicatória,
mas sou um pianista das antigas. Sua peça é escrita para percussão e não
para o meu tipo de piano." Stravinski foi direto ao ponto: "Você pensa
que ainda pode cantar no piano, mas isso é ilusão. O piano é só um
instrumento utilitário e soa percussivo. Vocês ficam milionários tocando
a música deixada por um Mozart e Schubert sem dinheiro, pobres, pelo
tuberculoso Chopin e pelo doente Beethoven". Em sua autobiografia,
Rubinstein reconheceu: "Ele estava certo. Sempre me senti um vampiro
sugando o sangue destes grandes gênios".
Para Isacoff, existem quatro tipos básicos de pianistas. Ele toma de
empréstimo dos filósofos pré-socráticos gregos a sacada dos quatro
elementos (terra, água, ar e fogo), para assim distinguir as
características de cada tipo. "O fogo está presente no piano tal como o
tocam Beethoven, Jerry Lee Lewis e Cecil Taylor. É música turbulenta. A
natureza flexível da água está presente nos melodistas românticos como
Schubert, Johann Christian Bach e George Shearing, capazes de construir
‘ondas sinuosas de melodias’". O ar é terreno dos alquimistas do piano
como Bill Evans, Claude Debussy e Thelonious Monk, "mestres da
atmosfera". E a terra fica com os "ritmistas", pianistas que privilegiam
o ritmo e trazem "o lado percussivo" do piano para o centro da cena,
como Fats Domino, Arturo O’Farrill e Sergei Prokofiev. A mistura de
pianistas/compositores clássicos com os de jazz é, claro, proposital - e
bem-vinda, muito bem-vinda.
Só um caçador de tiradas como Isacoff tiraria do fundo do baú o
pianista de Hitler. "Putzi", este era seu apelido, chamava-se Ernst
Hanfstaengl. Nasceu em 1887 e sobreviveu ao patrão por mais 30 anos.
"Ele está para Hitler assim como o harpista Davi, que tocava para o rei
Saul, na Bíblia."
Em compensação, são excelentes as páginas dedicadas aos russos, que
em 150 anos de convívio com a música clássica europeia - se tomarmos
como ponto de partida a sua institucionalização no país, em 1862, por
meio da fundação do Conservatório de São Petersburgo -, assumiram um
lugar decisivo na música do século 20. E também aos chineses,
responsáveis pelo único episódio histórico em que o piano foi banido
pela Revolução Cultural de Mao Tsé-tung na década de 70 do século
passado. Ironicamente, são eles hoje os responsáveis pelo maior "boom"
do piano no mundo via Lang Lang.
A conclusão nos leva a "Le Poisson Rouge", local famoso de Manhattan
nos anos 60, quando atendia pelo nome de Village Gate. "Foi lá", escreve
Isacoff, "que Bob Dylan encontrou pela primeira vez Allen Ginsberg; os
fantasmas de Jack London, Henry Miller, James Baldwin e Jack Kerouac
estão sempre presentes. Lá tocaram de modo memorável Miles Davis, John
Coltrane, Duke Ellington e Bill Evans. Pois em outubro de 2010, o
pianista Menahem Pressler tocou Bernstein, Brahms, Debussy, Gershwin e
Reich com o clarinetista Richard Stoltzman." Segundo o manifesto da
"nova" casa, a intenção é "a simbiótica relação entre arte e festa". Ali
rola música sem adjetivo - da vanguarda (Philip Glass comemorou lá mês
passado seus 75 anos) ao pop e à música clássica. Para Isacoff, a casa
simboliza o futuro da música clássica: "Le Poisson Rouge representa
simultaneamente o ‘look’ muito antigo e o muito novo da música clássica:
oferece celebrações informais num espaço onde cabem garçons e o
burburinho das conversas, onde os ouvintes podem pedir um drinque, um
salgadinho e pôr os cotovelos na mesa sem medo de pitos. Esta cena
representa o futuro da música clássica", comemora Isacoff, "porque
definitivamente dissolve a distância que cresceu historicamente cada vez
mais entre intérprete e ouvinte". Seu livro é mais um passo na
dissolução deste perverso biombo.
JOÃO MARCOS COELHO É JORNALISTA E CRÍTICO MUSICAL, AUTOR DO LIVRO-CD PIANO - UMA HISTÓRIA DE 300 ANOS (SELO SESC)
A NATURAL HISTORY OF THE PIANO
Autor: Stuart Isacoff
Editora: Knopf (384 págs., US$ 30)
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