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Ler para escrever


Se a leitura, na sua essência, em seu primeiro impulso, está invariavelmente associada ao prazer, é talvez no escritor, mais do quem em qualquer outro, que esta associação é sentida com mais força. São eles, os escritores, que a levam mais longe, a ponto de sentirem necessidade de a uma certa altura passar para o outro lado: por gostarem tanto de ler passam também a escrever.
Porém, a partir de determinado momento – o desejo de escrever já instalado, forçando a produção da escrita, a passagem ao ato –, a leitura assume outras funções. Lê-se para (também) aprender, para dissecar uma escrita, para vê-la por dentro. Aí a leitura é (pode ser) mais pragmática. É menos fruição e mais aplicação. E por vezes ela se torna até entediante, podendo transformar-se em um fardo. Já não se lê só por prazer.
O prazer da leitura está ligado ainda a uma espécie de ingenuidade infantil diante do texto literário, uma ingenuidade, em certa dose, necessária para o leitor ser cativado pelo texto, para se deixar levar pelo “jogo de faz-de-conta” próprio das brincadeiras infantis – e da ficção. Orhan Pamuk, em O romancista ingênuo e o sentimental – livro que reúne as seis conferências proferidas pelo escritor turco em 2009-2010 no quadro das Norton Lectures da Universidade de Haward –, desenvolve uma série de reflexões acerca da arte do romance a partir da divisão nestas duas categorias de leitores e romancistas: os ingênuos e os sentimentais ou reflexivos.
Na verdade Pamuk se inspira num ensaio de Schiller, Über naíve und sentimentalische Dichtung (Sobre a poesia ingênua e a sentimental), que utiliza a palavra sentimentalische num sentido um pouco diferente do significado mais imediato que normalmente damos para sentimental. Schiller a usa para caracterizar o poeta moderno, não ingênuo, que reflete sobre a poesia, sobre seus efeitos e que se atém aos seus próprios pensamentos, suas emoções, seus sentimentos.
Fiquemos, portanto, com este termo “ingênuo” para caracterizar o leitor que está mais interessado em se deixar levar pela história – entendendo-se aqui por história a sucessão de acontecimentos vividos pelos personagens e narrados no texto – do que propriamente na sua mecânica – o amplo e complexo universo criado pela narrativa através do tratamento que o autor confere a aspectos como o próprio personagem, a linguagem, o cenário, o tempo, etc.
Por outro lado, o leitor que escreve (o escritor) não pode ficar completamente alheio a estes aspectos que, diríamos, fazem o texto funcionar, ou seja, fazem-no ser capaz de cativar um leitor (ingênuo ou não).
Se o leitor ingênuo lê pelo prazer, o leitor-escritor, o leitor reflexivo (para continuar com a nomenclatura de Pamuk) lê também para enxergar o texto por dentro (ou por trás de sua fachada aparente), para saber por que aquele texto específico provocou-lhe (e a outros) tanto prazer. São posturas diferentes diante do texto, que resultam em leituras diferentes: uma constrói a história a partir dos elementos que o texto oferece e a outra a constrói igualmente, num primeiro momento, para desmontá-la logo a seguir (ou ao mesmo tempo) a fim de entender as engrenagens deste artifício que se chama texto literário.
Ora, toda leitura de uma obra literária pressupõe um pacto implícito entre o leitor e o texto: sabemos que se trata de uma ficção mas fingimos acreditar que se trata de algo real. Mesmo a mais fantástica das narrativas traz sempre uma reivindicação do real. O leitor acompanha as peripécias do personagem de um conto ou de um romance como se todos os acontecimentos narrados tivessem de fato ocorrido, mesmo sabendo que se trata da imaginação do autor, e mais do que isso, que os elementos da narrativa estão organizados, manipulados artificialmente, de maneira a lhe causar essa impressão de realidade.
O que faz o leitor dito ingênuo é “esquecer” esta artificialidade própria da narrativa, entregando-se ao puro prazer de seguir o fio da história tentando extrair significados daquilo que vai encontrando ao longo do texto.
Porque, no fundo, ler significa implicar esforços, maiores ou menores, no sentido de buscar apreender as verdadeiras intenções do autor, intenções estas que, nos bons textos, estão sempre mais ou menos veladas. Um texto ficcional funciona em uma estrutura próxima da dos jogos de adivinhação. A linguagem literária assemelha-se a uma linguagem cifrada onde o texto é constituído de uma série de pistas deixadas pelo autor a um desconhecido leitor que, interpretando e relacionando as pistas entre si, poderá clarificar pelo menos algumas das zonas de sombra deste texto, extraindo-lhe sentidos. Seria como decifrar uma mensagem após longo estudo dos indícios, o que, é evidente, nunca se dá sem esforço. A satisfação do leitor ao sentir que apreendeu algo essencial do texto é a recompensa prazerosa por este esforço.
Ora, quando o leitor-escritor atém-se mais ao mecanismo do texto, à maneira como o autor distribui as pistas ao longo do texto, aos artifícios dos quais ele lança mão para fazer “funcionar” o texto, o prazer da leitura pura diminui, ou melhor, não há mais este tipo de leitura. Quando o caráter artificial do texto é trazido à tona, a impressão de realidade se enfraquece e ele acaba por perder um pouco do seu charme, do seu poder de fascinação.
Não raro nos deparamos com manifestações de escritores nostálgicos de um tempo em que liam de maneira descompromissada, por puro prazer. Reclamam de uma espécie de “deformação profissional” do olhar que agora não consegue deixar de ver a técnica que põe em pé um texto – nostalgia de um olhar ingênuo, o olhar infantil, que não vê, ou não tem a sua atenção voltada para os artifícios da construção.
O aprendizado implica perdas.

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