
Em livro lançado essa semana, o ex-delegado de polícia Cláudio Guerra
assume a autoria de crimes contra militantes políticos, revelando que
corpos foram incinerados em uma usina de cana em Campos dos Goytacazes,
nos anos 70 e 80. Em outros depoimentos identifica mandantes de crimes
contra militantes políticos, tecendo um relato inédito da repressão.
As impactantes revelações do ex-delegado intensificam o debate
público a respeito da criação da Comissão Nacional da Verdade, tendo a
força catalisadora de fomentar outros depoimentos e informações sobre as
graves violações perpetradas ao longo do regime militar. Ineditamente,
em 18 de novembro de 2011, foi adotada a Lei n. 12.528, que institui a
Comissão, com a finalidade de examinar e esclarecer crimes praticados
durante o regime militar, efetivar o “direito à memória e à verdade e
promover a reconciliação nacional”. O Programa Nacional de Direitos
Humanos III, lançado em 21 de dezembro de 2009, já previa a Comissão de
Verdade, com o objetivo de resgatar informações relativas ao período da
repressão militar.
Contudo, tal proposta foi alvo de acirradas polêmicas, controvérsias e
tensões políticas entre o Ministério da Defesa (que a acusava de
“revanchista”) e a Secretaria Especial de Direitos Humanos e o
Ministério da Justiça (que a defendiam em nome do direito à memória e à
verdade), culminando, inclusive, com a exoneração do general chefe do
departamento do Exército, por ter se referido à “comissão da calúnia”.
Qual é o sentido do direito à verdade? Qual é seu alcance e
propósito? Em que medida pode contribuir para a consolidação
democrática? Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, “toda
sociedade tem o direito irrenunciável de conhecer a verdade do ocorrido,
assim como as razões e circunstâncias em que aberrantes delitos foram
cometidos, a fim de evitar que esses atos voltem a ocorrer no futuro”. O
direito à verdade apresenta uma dupla dimensão: individual e coletiva.
Individual ao conferir aos familiares de vítimas de graves violações o
direito à informação sobre o ocorrido, permitindo-lhes o direito a
honrar seus entes queridos, celebrando o direito ao luto. Coletivo ao
assegurar à sociedade em geral o direito à construção da memória e
identidade coletivas, cumprindo um papel preventivo, ao confiar às
gerações futuras a responsabilidade de prevenir a ocorrência de tais
práticas. Como sustenta um parlamentar chileno: “A consciência moral de
uma nação demanda a verdade porque apenas com base na verdade é possível
satisfazer demandas essenciais de justiça e criar condições necessárias
para alcançar a efetiva reconciliação nacional”.
No mesmo dia 18 de novembro de 2011, foi também adotada a lei que
garante o acesso à informação, sob o lema de que a publicidade é a
regra, sendo o sigilo a exceção. Com efeito, no regime democrático a
regra é assegurar a disponibilidade das informações. As limitações ao
direito de acesso à informação devem se mostrar necessárias em uma
sociedade democrática para satisfazer um interesse público imperativo.
No atual contexto brasileiro, o interesse público imperativo não é o
sigilo eterno de documentos públicos, mas, ao contrário, o amplo e livre
acesso aos arquivos. Para Norberto Bobbio, a opacidade do poder é a
negação da democracia, que é idealmente o governo do poder visível, ou o
governo cujos atos se desenvolvem em público, sob o controle
democrático da opinião pública.
Diversamente dos demais países da região, como conclui o pesquisador
americano Anthony Pereira, “a justiça de transição no Brasil foi mínima.
Nenhuma Comissão de Verdade foi (ainda) instalada, nenhum dirigente do
regime militar foi levado a julgamento e não houve reformas
significativas nas Forças Armadas ou no Poder Judiciário”. No Brasil tão
somente foi contemplado o direito à reparação, com o pagamento de
indenização aos familiares dos desaparecidos políticos, nos termos da
Lei n.9140/95.
Direito à verdade e direito à informação simbolizam um avanço
extraordinário ao fortalecimento do Estado de Direito, da democracia e
dos direitos humanos no Brasil. São instrumentos capazes de transformar a
dinâmica de poder dos atores sociais, revelando o sentido do presente e
sua relação com o passado. A luta pelo dever de lembrar merece
prevalecer em detrimento daqueles que insistem em esquecer. Afinal, como
observa o filósofo Charles Taylor, “para termos um sentido de quem
somos, temos que dispor de uma noção de como viemos a ser e para onde
estamos indo. Isso requer uma compreensão narrativa da vida. O que sou
tem que ser entendido como aquilo em que me tornei, pela história de
como ali cheguei”.
A AUTORA DO TEXTO, FLÁVIA PIOVESAN, É PROFESSORA DE DIREITOS HUMANOS DA PUC/SP E PUC/PR,
PROCURADORA DO ESTADO DE SP E FELLOW DA HUMBOLDT FOUNDATION NO
MAX-PLANCK-INSTITUTE (HEIDELBERG)
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