NOVA YORK - Se o compositor Philip Glass decidisse montar uma versão
alternativa de sua ópera Satyagraha, o jornalista e escritor Joseph
Lelyveld, autor do recém-lançado Mahatma Gandhi e Sua Luta com a Índia
(Companhia das Letras, 480 págs., R$ 48) já teria pronta a sugestão da
cena para o primeiro ato. O biógrafo começaria, não na África do Sul,
onde o fundador da Índia independente elaborou a tática de resistência
não violenta que dá nome à opera. "Eu começaria em Noakhali, na Índia",
diz ele, numa referência à região por onde Gandhi perambulou descalço
pouco antes de ser assassinado em 1948, sem conseguir aproximar
muçulmanos e hindus.
"Este homem que tinha fama e poder, vagando por uma região rural
remota, tentando, pelo próprio exemplo moral, trazer a paz, na esperança
de que poderia espalhar a boa vontade pelo resto do país, aquilo era
uma utopia fadada ao fracasso. Ele fez jejum, conseguiu acalmar as
revoltas étnicas em Calcutá e, em seguida, Nova Délhi, arriscando a
própria vida." Lelyveld acha que os últimos meses da vida de Gandhi já
contêm fartura operática suficiente.
A tese desta nova biografia é que não teríamos o mais influente líder
pacifista do século 20, o pai da segunda república mais populosa do
planeta, sem a sua passagem de 21 anos pela África do Sul, entre a
minoria indiana. Foi neste período que Gandhi enfrentou o racismo, o
colonialismo e ensaiou os primeiros protestos que iriam definir sua
liderança no retorno à Índia, onde ele, em menos de 5 anos, transformou o
nacionalismo elitista num movimento de massas.
O Gandhi que emerge dessas páginas é mais humano e contraditório e,
portanto, mais fascinante do que o cristalizado ícone nacional indiano.
As convicções de um homem conhecido por rejeitar o sistema de castas ou
promover a virtude na economia evoluíram ao longo de cinco décadas de
vida pública e nem sempre estiveram afinadas com as noções
contemporâneas de igualdade, social e racial.
O livro foi inspirado em parte pelas passagens de Lelyveld como correspondente do New York Times
na África do Sul e na Índia. Gandhi morreu odiado por muitos de seus
compatriotas, que se consideravam traídos por sua luta contra a divisão
que resultou na criação do muçulmano Paquistão. Lelyveld compara Gandhi,
no fim da vida, a um Rei Lear, "obrigado a reduzir sua ambição de mudar
o mundo". Uma ambição visionária que continua a informar causas
díspares, da Primavera Árabe ao movimento ecológico.
O autor que abriu a porta do apartamento com vista para o West Side
de Manhattan é cordial, um pouco distante e franzino. O papel de
pacificador, numa escala infinitamente menor, também faz parte da
biografia de Joseph Lelyveld. Ele foi arrancado da aposentadoria, em
2003, para acalmar a redação do New York Times durante uma de suas
piores crises existenciais: o escândalo do fabricador de reportagens
Jayson Blair, que resultou na demissão do bombástico editor-chefe Howell
Raines.
Lelyveld, ganhador de um Prêmio Pulitzer pelo excelente Move Your
Shadow: South África, Black and White (Mova a Sua Sombra: África do Sul,
Preto e Branco, 1985), uma história do apartheid, havia se oposto à
indicação de Raines para seu sucessor na chefia do jornal. Raines fez
tudo para desmoralizar a gestão de Lelyveld, mas conseguiu mesmo foi
baixar o moral da redação e, com o escândalo armado pelo protegido
Jayson Blair, foi deposto. Arthur Sulzberger, o publisher do Times,
tirou Lelyveld de casa com a missão de administrar a transição para o
comando de Bill Keller, o seu preferido original, que deixou o cargo no
ano passado. Esta trama não está descrita, é claro, na elogiada nova
biografia de Gandhi. Mas ela acrescenta uma coda interessante à
narrativa da publicação do livro.
Logo após o lançamento americano de Mahatma Gandhi e Sua Luta com a
Índia, em março de 2011, uma das primeiras resenhas foi publicada pelo
Wall Street Journal e assinada pelo historiador de direita Andrew
Roberts. O estudioso, que tem profunda antipatia pelo biografado,
destacou uma pequena passagem do livro, em que Lelyveld transcreve
cartas amorosas de Gandhi ao arquiteto e halterofilista alemão Hermann
Kallenbach. Gandhi morou com Kallenbach em Johannesburgo e os dois
fundaram uma comunidade utópica rural, a Fazenda Tolstoy. Foi armado o
barraco internacional. Um tabloide sensacionalista inglês estampou a
manchete Gandhi Largou a Mulher Para Viver Com Um Amante e a notícia
caiu na "tamasha", a sensacionalista mídia indiana. Gujarat, o Estado
natal de Gandhi, baniu o livro, que ainda não estava em circulação.
Políticos indianos denunciaram o que imaginaram ser um ataque a seu
herói nacional.
Recostado na confortável biblioteca do apartamento, Lelyveld esboça
um sorriso maroto. Em meio aos protestos, seu editor indiano antecipou a
publicação da biografia e triplicou a circulação, prevendo que o livro
se tornaria best-seller. Ele vai à estante buscar um volume da extensa
coleção de escritos de Gandhi, em que as cartas a Kallenbach repousavam
há décadas mas nunca haviam sido incluídas numa biografia.
Pergunto a ele se, depois de ser bem-sucedido no esforço
civilizatório, quando o mais importante jornal de língua inglesa era
sacudido pela incerteza e o imediatismo da era digital, ele não acha
irônico ter sido atropelado pela dita era: as buscas online pela
biografia destacam invariavelmente o suposto bissexualismo de Gandhi.
"Sim", ele concorda, resignado. "Tive que aturar isto durante meses."
Mas, em janeiro deste ano, o autor cumpriu uma turnê de palestras na
Índia e foi bem recebido. "Não me tornei notório", ele conclui, com o
alívio de quem, aos 75 anos, conseguiu reescrever a conclusão de parte
da própria biografia, à frente do Times.
Mohandas Karamchand Gandhi recebeu seu título honorífico de Mahatma,
"grande alma" em sânscrito, do poeta Rabindranath Tagore. O livro de
Lelyveld comeca quando o jovem advogado desembarca na África do Sul em
1893 e, em poucos dias, enfrenta com firmeza um juiz que lhe pede para
remover o turbante num tribunal. O tema da representação sartorial e do
corpo como instrumento de afirmação é bem explorado pelo autor. Lelyveld
nota que o homem emaciado e descalço tornou impossível para a futura
geração de líderes indianos aparecer em público com trajes ocidentais.
A biografia termina quando Gandhi, tendo recusado qualquer proteção
policial, numa Índia recém-independente e dilacerada pela violência
genocida entre hindus e muçulmanos, é morto pelos disparos à
queima-roupa de um ultranacionalista hindu. No tribunal, o réu justifica
o crime, lembra Lelyveld: "Ele tinha um caráter tão nobre, que o
governo indiano, para atender Gandhi, ia acabar favorecendo os
muçulmanos. Um homem tão moral tinha que desaparecer da cena política",
concluiu o assassino.
Franz says: Mahatma Gandhi é um exemplo de líder carismático e um dos maiores pregadores da paz que o mundo teve. Suas lições são comparadas às de Cristo e muitos o idolatram pelo exemplo que deixou. Ele não morreu em vão. Uma nação inteira, dominada pelo poder imperialista, foi libertada pela atitude e força de vontade que o Mahatma - a grande alma - mostrou serem necessesárias para isso. A Índia passou por anos de exploração e miséria, as sequelas do período como colônia estão presentes até os dias atuais, mas é fato que as coisas estariam bem piores sem a política de não-violência de Gandhi.
Então, tal como aconteceu com Zumbi dos Palmares, Lampião, Chico Xavier e outros personagens históricos, eis que surge um livro pondo em questão a sexualidade de Gandhi. Agora, honestamente, me respondam: o que importa a opção sexual quando a obra dele salvou física e espiritualmente milhões de pessoas? Acaso a relevância do sacrifício por ele realizado irá desintegrar por conta de um sentimento que ele sentiu - como o livro afirma - por um outro homem?
Não vejo relevância ou motivações para levantar-se essa bandeira a esta altura da história. Fosse ele gay, bissexual, heterossexual ou até estivesse enquadrado na atual categoria "metrossexual", isso não iria mudar tudo o que foi feito. As greves de fome em busca da paz para seu país e também para buscar o fim dos conflitos entre hindus e muçulmanos estão encravadas na história.
Enfim, não me importa qual tenha sido a opção sexual de Gandhi, pois o seu sacrifício e suas conquistas estão acima de qualquer dilema que envolva apenas o ganho de dinheiro com base na incontrolável vontade humana de dar atenção a boatos, comentários maliciosos e difamação. Minha opinião sincera é a de que o autor buscou essa informação para alavancar as vendas de seu livro. Espero estar enganado...
Então, tal como aconteceu com Zumbi dos Palmares, Lampião, Chico Xavier e outros personagens históricos, eis que surge um livro pondo em questão a sexualidade de Gandhi. Agora, honestamente, me respondam: o que importa a opção sexual quando a obra dele salvou física e espiritualmente milhões de pessoas? Acaso a relevância do sacrifício por ele realizado irá desintegrar por conta de um sentimento que ele sentiu - como o livro afirma - por um outro homem?
Não vejo relevância ou motivações para levantar-se essa bandeira a esta altura da história. Fosse ele gay, bissexual, heterossexual ou até estivesse enquadrado na atual categoria "metrossexual", isso não iria mudar tudo o que foi feito. As greves de fome em busca da paz para seu país e também para buscar o fim dos conflitos entre hindus e muçulmanos estão encravadas na história.
Enfim, não me importa qual tenha sido a opção sexual de Gandhi, pois o seu sacrifício e suas conquistas estão acima de qualquer dilema que envolva apenas o ganho de dinheiro com base na incontrolável vontade humana de dar atenção a boatos, comentários maliciosos e difamação. Minha opinião sincera é a de que o autor buscou essa informação para alavancar as vendas de seu livro. Espero estar enganado...
Gandhi "metrossexual" seria engraçado. Justo ele que trocou as roupas ocidentais pelas vestes típicas indianas...
ResponderExcluirSobre Gandhi, faço das suas palavras as minhas; já li duas biografias sobre ele, além de um ensaio biográfico feito por Cecilia Meirelles. E pelo que pude concluir, ele era, como todos nós, um ser passível de erros e contradições, mas foi capaz de demonstrar a todos que é possível vencer o maior império do mundo sem disparar uma bala, sem desferir um único golpe. Essencialmente não brigava com os britânicos, mas lutava por Justiça. E concordo com o autor, sua experiência na África do Sul foi muito importante para suas ações na Índia.
Quanto ao livro, eu já havia lido algo sobre sua repercussão, mas lendo atentamente, o problema não está no livro, mas na crítica tendenciosa que foi feita sobre ele:
"Uma das primeiras resenhas foi publicada pelo Wall Street Journal e assinada pelo historiador de direita Andrew Roberts. O estudioso, que tem profunda antipatia pelo biografado, destacou uma pequena passagem do livro, em que Lelyveld transcreve cartas amorosas de Gandhi"
"Um tabloide sensacionalista inglês estampou a manchete Gandhi Largou a Mulher Para Viver Com Um Amante e a notícia caiu na "tamasha", a sensacionalista mídia indiana."
Segundo o que li em um artigo publicado no próprio Estadão no começo do ano, no suplemento Aliás (infelizmente não encontrei-o na internet), as cartas existem, o autor apenas as transcreve, em pequena passagem. Seria desonesto se tivesse inventado a história, o que não é o caso. Além disso, não é esse o foco do livro. Se houve manipulação não foi do autor. Até pelo contrário, entendo que foi alvo de sensacionalismo. Lelyveld recebeu um Prêmio Pulitzer, que não é algo para se desprezar. Claro, toda premiação está sujeita a erros, controvérsias, mas por isso também se pode perceber que Lelyveld não um autor qualquer.
De qualquer forma, a conclusão é correta. Pouco importa a orientação sexual. Isso pode até ser um fato, mas julgar apenas por esse fato é um preconceito. É desconsiderar todo o resto. É o mesmo erro de julgar o livro todo por uma passagem. E lamentavelmente o livro sofreu censura na Índia, por causa disso.
Tenho dito...
ExcluirObrigado pelo comentário, Eduardo. Não tinha notícia do uso indevido da informção, ou melhor, do uso sensacionalista. Buscarei o suplemento Aliás e mais informações sobre a obra.
Abraços.