Pele humana industrializada |
Fonte: Folha de São Paulo. Tradução: Marcelo Soares
Em 24 de fevereiro, as autoridades ucranianas descobriram ossos e outros
tecidos humanos amontoados em caixas refrigeradas num micro-ônibus
branco encardido.
Os investigadores ficaram ainda mais intrigados quando descobriram,
entre as partes de corpos, envelopes cheios de dinheiro e relatórios de
autópsia escritos em inglês.
O que a batida apreendeu não era obra de um serial killer, mas parte de
um escoadouro internacional de ingredientes para produtos médicos e
odontológicos rotineiramente implantados em pessoas ao redor do mundo.
Os documentos apreendidos sugeriam que os restos de ucranianos mortos
eram destinados a uma fábrica na Alemanha pertencente à subsidiária de
uma empresa norte-americana de produtos médicos, com sede na Flórida --a
RTI Biologics.
A RTI faz parte de um negócio crescente de empresas que lucram
transformando restos mortais em tudo, de implantes dentários a material
para amenizar rugas.
Pele humana: cor de salmão |
Só nos EUA, o maior mercado e o maior fornecedor, estima-se que 2
milhões de produtos derivados de tecidos humanos sejam vendidos a cada
ano, um número que duplicou na última década.
Trata-se de uma indústria que promove tratamentos e produtos que
literalmente permitem que cegos enxerguem (por meio do transplante de
córnea) e os portadores de deficiência física caminhem (reciclando
tendões e ligamentos para uso em cirurgias de joelho). É também uma
indústria alimentada por poderosos apetites por lucros e novos corpos
humanos.
Na Ucrânia, por exemplo, o serviço de segurança acredita que corpos que
passaram por um necrotério no bairro Mykolaiv, uma região de estaleiros
localizada próximo ao mar Negro, podem ter alimentado o negócio,
deixando para trás o que os investigadores descreveram como
potencialmente dezenas de "fantoches humanos" --cadáveres despojados de
suas partes reutilizáveis.
Representantes do setor argumentam que tais supostos abusos são raros, e que a indústria opera com segurança e responsabilidade.
A RTI não respondeu a repetidos pedidos de comentário ou a uma lista
detalhada de perguntas encaminhada um mês antes desta publicação.
Em declarações públicas, a empresa diz que "honra a doação de tecidos
tratando o material com respeito, encontrando novas maneiras de usar os
tecidos para ajudar os pacientes e ajudando o maior número possível de
pacientes a cada doação".
"NOSSA DESGRAÇA"
Apesar de seu crescimento, o negócio dos tecidos humanos escapou, em
grande medida, ao debate público. Isso ocorre em parte graças à
fiscalização fraca --e ao apelo popular da ideia de permitir que os
mortos ajudem os vivos a sobreviver e prosperar.
Numa investigação de oito meses em 11 países, o Consórcio Internacional
de Jornalistas Investigativos (ICIJ) descobriu, no entanto, que as boas
intenções da indústria de tecidos humanos às vezes entram em conflito
com a pressa de ganhar dinheiro com os mortos.
Há salvaguardas inadequadas para garantir que todo o tecido utilizado
pela indústria seja obtido legalmente e eticamente, segundo o ICIJ
descobriu em centenas de entrevistas e milhares de páginas de documentos
públicos obtidos por meio das leis de acesso a informações públicas em
seis países.
Apesar das preocupações dos médicos de que um negócio mal regulado possa
permitir que tecidos doentes transmitam a pacientes transplantados
doenças como hepatite, HIV e outras, as autoridades pouco fazem para
reduzir os riscos.
Em contraste com os sistemas bem monitorados de rastreamento de órgãos
intactos, como coração e pulmões, as autoridades dos EUA e de muitos
outros países não têm como saber com precisão de onde vêm e para onde
vão a pele reciclada e outros tecidos.
Sergei Malish |
Os parentes, como os pais de Sergei Malish, um ucraniano de 19 anos que
cometeu suicídio em 2008, acabam precisando lidar com uma realidade
sombria.
No funeral de Sergei, seus pais descobriram cortes profundos em seus pulsos. No entanto, eles sabiam que ele havia se enforcado.
Mais tarde, descobriram que partes de seu corpo haviam sido recicladas e vendidas como "material anatômico".
"Eles ganham dinheiro com a nossa desgraça", disse o pai de Sergei.
SILÊNCIO CONSTRANGEDOR
Durante a jornada de transformação pela qual passa o tecido --de parte
de um cadáver a um insumo médico--, alguns pacientes nem sequer sabem
que estão recebendo partes humanas.
Produtos feitos de tecido humano |
Tampouco as autoridades estão sempre cientes de onde vêm ou para onde vão os tecidos.
A falta de acompanhamento adequado significa que, quando os problemas
chegam a ser descobertos, alguns dos produtos feitos com partes de
cadáveres não podem ser localizados. Quando os Centros de Controle e
Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA ajudam no recall de produtos feitos a
partir de tecidos potencialmente contaminados, os médicos de
transplante dificilmente ajudam muito.
"Muitas vezes há um silêncio constrangedor. Eles dizem: 'Não sabemos
onde está", disse o Dr. Matthew Kuehnert, diretor do departamento de
sangue e biologia do CDC.
"Os cereais [do café da manhã] têm códigos de barras, mas os tecidos
humanos não têm", disse Kuehnert. "Todo paciente que tem tecido
implantado deveria saber. É tão óbvio. Devia ser um direito básico do
paciente, mas não é. Isso é ridículo."
Desde 2002, a Food and Drug Administration dos EUA documentou ao menos
1.352 infecções no país transmitidas por transplantes de tecidos
humanos, de acordo com uma análise feita pelo ICIJ em dados do FDA.
Essas infecções foram ligadas às mortes de 40 pessoas, mostram os dados.
Um dos pontos fracos do sistema de monitoramento de tecido é o sigilo e a
complexidade que vêm com o comércio internacional de partes do corpo.
Os eslovacos exportam partes de cadáveres para os alemães; os alemães
exportam produtos acabados para a Coreia do Sul e para os Estados
Unidos; os sul-coreanos, para o México; e os EUA, para mais de 30
países.
Os distribuidores de produtos manufaturados estão em União Europeia,
China, Canadá, Tailândia, Índia, África do Sul, Brasil, Austrália e Nova
Zelândia. Alguns são subsidiários de corporações médicas
multinacionais.
A natureza internacional da indústria, dizem os críticos, torna mais
fácil levar os produtos de um lugar para outro sem muito escrutínio.
"Se eu comprar algo de Ruanda, depois colocar um rótulo belga, posso
importar para os EUA. Depois de entrar no sistema oficial, todo mundo
confia", disse o Dr. Martin Zizi, professor de neurofisiologia da
Universidade Livre de Bruxelas.
Quando um produto chega à União Europeia, pode ser enviado para os EUA sem que sejam feitas muitas perguntas.
"Eles presumem que você tenha feito o controle de qualidade", disse
Zizi. "Somos mais cuidadosos com frutas e legumes do que com partes do
corpo."
NEGÓCIO LUCRATIVO
No mercado de tecidos humanos, as oportunidades de lucros são imensos.
Um único corpo livre de doenças pode gerar fluxos de caixa de US$ 80 mil
a US$ 200 mil para os vários envolvidos, com e sem fins lucrativos, na
recuperação de tecidos ao usá-los para fabricar produtos médicos e
odontológicos, de acordo com documentos e os especialistas
entrevistados.
É ilegal nos EUA, como na maioria dos outros países, comprar ou vender
tecidos humanos. No entanto, é permitido que se paguem taxas de serviço
que ostensivamente cobrem os custos de encontrar, armazenar e processar
tecidos humanos.
Quase todo mundo leva alguma parte.
Olheiros de corpos nos EUA podem ganhar até US$ 10 mil para cada cadáver
que garantam em seus contatos em hospitais e necrotérios. Funerárias
podem atuar como intermediárias para identificar potenciais doadores. Os
hospitais públicos podem ser pagos pelo uso de salas de recuperação de
tecidos.
E as multinacionais de produtos médicos como a RTI? Ganham bem, também.
No ano passado, a RTI lucrou US$ 11,6 milhões antes dos impostos sobre
receita de US$ 169 milhões.
Phillip Guyett, que administrava uma empresa de recuperação de tecidos
em vários Estados dos EUA antes de ser condenado por falsificação de
atestados de óbito, afirmou que os executivos de empresas a quem vendia
tecidos o convidavam para refeições de US$ 400 e estadias em hotéis de
luxo.
Eles prometeram: "Podemos torná-lo um homem rico". Chegou o momento, disse ele, que começou a olhar para cadáveres e ver "cifrões pendurados em suas partes". Guyett diz que nunca trabalhou diretamente para a RTI.
Eles prometeram: "Podemos torná-lo um homem rico". Chegou o momento, disse ele, que começou a olhar para cadáveres e ver "cifrões pendurados em suas partes". Guyett diz que nunca trabalhou diretamente para a RTI.
SALMÃO DEFUMADO
A pele humana tem cor de salmão defumado quando é profissionalmente
removida de um cadáver, em formas retangulares. Uma boa produtividade é
de cerca de 0,6 metro quadrado.
Depois de ser esmagada para remover a umidade, parte da pele está
destinada a proteger vítimas de queimaduras de infecções bacterianas ou,
após ser mais uma vez refinada, pode ser usada em reconstruções da mama
após o câncer.
O uso de tecidos humanos "realmente revolucionou o que se pode fazer em
cirurgias de reconstrução de mama", explica o Dr. Ron Israeli, cirurgião
plástico em Great Neck, Nova York.
"Desde que começamos a usá-lo, por volta de 2005, tornou-se uma técnica padrão."
Um número significativo de tecidos recuperados é transformado em
produtos cujos nomes comerciais dão poucas pistas sobre a sua verdadeira
origem.
São usados nos ramos odontológicos e de beleza --para tudo, de preencher os lábios a suavizar as rugas.
Ossos --recolhidos dos mortos e substituídos por canos de PVC para o
enterro-- são esculpidos como pedaços de madeira em parafusos e buchas
para dezenas de aplicações dentárias e ortopédicas.
Ou o osso é triturado e misturado com produtos químicos para formar
fortes colas cirúrgicas anunciadas como sendo melhores do que a
variedade artificial.
"No nível mais básico, o que estamos fazendo ao corpo é uma coisa muito
física --e imagino que alguns diriam muito grotesca", disse Chris
Truitt, um funcionário da ex-RTI. "Retiramos os ossos do braço.
Retiramos os ossos da perna. Abrimos o peito para puxar o coração e
extrair as válvulas. Puxamos as veias para fora da pele."
Tendões inteiros, limpos de forma segura para transplante, são usados para devolver atletas lesionados ao campo.
Há também um comércio de córneas, dentro dos países e internacionalmente.
Devido à proibição de vender o próprio tecido, as empresas
norte-americanas que deram início ao negócio adotaram os mesmos métodos
do ramo de coleta de sangue.
As empresas com fins lucrativos criam subsidiárias sem fins lucrativos
para coletar o tecido --da mesma maneira como a Cruz Vermelha recolhe
sangue, que é posteriormente transformado em produtos por entidades
comerciais.
Ninguém cobra pelo tecido em si, que em circunstâncias normais é
livremente doado pelos mortos (por meio de cadastros de doadores) ou por
suas famílias.
Em vez disso, os bancos de tecidos e outras organizações envolvidas no
processo recebem mal definidos "pagamentos razoáveis" para compensá-las
pela obtenção e o manuseio do tecido.
"A linguagem comum é se referir aos contratos de doadores como
'colheita' e às transferências subsequentes por meio do banco de ossos
como 'compra' e 'venda'", escreveu Klaus Hoyer, do Departamento de Saúde
Pública da Universidade de Copenhague, que ouviu representantes do
setor, doadores e receptores para um artigo publicado na revista
acadêmica "BioSocieties".
"As expressões foram utilizadas livremente em entrevistas, mas nunca ouvi essa terminologia ser usada na frente dos pacientes."
Um estudo financiado pelo governo dos EUA com famílias de doadores de
tecidos no país, publicado em 2010, indica que muitos podem não entender
o papel de empresas com fins lucrativos no sistema de doação de
tecidos.
Das famílias que participaram do estudo, 73% disseram que "não é
aceitável que o tecido doado seja comprado ou vendido, para qualquer
finalidade".
POUCA PROTEÇÃO
Existe um risco inerente ao transplante de tecidos humanos. Entre outras
coisas, ele causa risco de infecções bacterianas e de propagação de
HIV, hepatite C e raiva em receptores de tecidos, de acordo com o CDC.
A coleta moderna de sangue e órgãos usa códigos de barras e é fortemente
regulamentada. Houve reformas recentes, incitadas por desastres de alto
nível causados ​​pela má triagem de doadores. Os
produtos feitos com tecidos da pele e outros, no entanto, têm poucas
leis específicas próprias.
Nos EUA, a agência que regula o setor é a Food and Drug Administration, a
mesma agência encarregada de proteger o abastecimento de alimentos,
medicamentos e cosméticos no país.
A FDA, que recusou vários pedidos de entrevistas gravadas, não tem
autoridade sobre os serviços de saúde que implantam o material. E a
agência não rastreia especificamente infecções.
Ela acompanha bancos de tecidos registrados e às vezes abre uma inspeção. Ela também tem o poder de fechá-los.
A FDA depende em grande medida das normas definidas por um órgão da
indústria, a Associação Americana de Bancos de Tecidos (AATB). A
associação recusou repetidos pedidos de entrevistas gravadas ao longo de
quatro meses. Numa entrevista de contextualização ao ICIJ, na semana
passada, ela informou que a "vasta maioria" dos bancos que recuperam
tecidos tradicionais, como pele e osso, é credenciada pelo AATB. Porém,
uma análise de bancos credenciados pela AATB e dados de registro da FDA
mostram que apenas cerca de um terço dos bancos de tecidos que recuperam
tecidos tradicionais, como pele e osso, são credenciados.
A associação diz que a chance de contaminação em pacientes é baixa. A
maioria dos produtos, diz a AATB, é submetida a radiação e
esterilização, tornando-os mais seguros do que, digamos, órgãos
transplantados para outro ser humano.
"O tecido é seguro. É extremamente seguro", disse um executivo da AATB.
Há poucos dados, porém, que apoiem as afirmações do setor.
Diferentemente de outros produtos biológicos regulados pelo FDA,
explicam funcionários da agência, as empresas que fabricam produtos
médicos usando tecidos humanos são obrigadas a relatar apenas os efeitos
adversos mais graves descobertos. Isso significa que, caso surjam
problemas, não há garantia de que as autoridades sejam alertadas.
Como os médicos não são obrigados a informar aos pacientes que estão
recebendo de tecidos de um cadáver, muitos pacientes não podem associar
qualquer infecção posterior ao transplante.
Sobre esse ponto, a indústria diz que é capaz de rastrear os produtos
dos doadores até os médicos, usando seus próprios sistemas de
codificação, e que muitos hospitais têm sistemas para acompanhar os
tecidos depois de serem implantados.
Mas nenhum sistema centralizado regional ou global assegura que os produtos possam ser acompanhados do doador ao doente.
"Provavelmente, muito poucas pessoas se infectam, mas nós realmente não
sabemos porque não temos vigilância e um sistema para detectar eventos
adversos", disse Kuehnert, do CDC.
O FDA recolheu mais de 60 mil derivados de tecido entre 1994 e meados de 2007.
O recall mais famoso ocorreu em 2005. Tratava-se de uma empresa chamada
Biomedical Tissue Services, dirigida pelo ex-cirurgião dentista Michael
Mastromarino.
Mastromarino recebia boa parte de suas matérias-primas de funerárias em
Nova York e na Pensilvânia. Ele pagava até US$ 1.000 por órgão, segundo
os registros judiciais.
Sua empresa retirava ossos, pele e outras partes utilizáveis e depois
entregava os corpos às famílias. Sem saber o que aconteceu, os parentes
enterravam ou cremavam as provas.
Um dos mais de mil corpos desmembrados foi o do famoso apresentador da emissora BBC Alistair Cooke.
Produtos feitos com restos humanos roubados foram enviados para Canadá,
Turquia, Coreia do Sul, Suíça e Austrália. Mais de 800 desses produtos
nunca foram localizados.
Mais tarde, um tribunal descobriu que alguns dos doadores de tecidos
haviam morrido de câncer e que nenhum deles tinha sido testado para
detectar doenças como HIV e hepatite.
Mastromarino falsificou registros de doadores, mentindo sobre as causas
de morte e outros detalhes. Ele vendia pele e outros tecidos a várias
empresas norte-americanas de processamento de tecidos, incluindo a RTI.
"Desde o primeiro dia, foi tudo forjado; tudo, porque podíamos. Enquanto
a papelada parecesse boa, tudo bem", disse Mastromarino, que cumpre
pena de prisão de 25 a 58 anos por roubo, conspiração e abuso de
cadáveres.
XERIFE GLOBAL
Cada país tem suas próprias regras para usar produtos fabricados a
partir de tecido humano, frequentemente com base em leis originalmente
destinadas a lidar com sangue ou órgãos.
Na prática, no entanto, como os EUA atendem a cerca de dois terços das
necessidades globais de produtos feitos com tecidos humanos, a FDA (Food
and Drug Administration) efetivamente foi deixada como a xerife de
grande parte do planeta.
Empresas estrangeiras de tecidos humanos que desejem exportar para os EUA devem se registrar na FDA.
No entanto, das 340 empresas estrangeiras de tecidos registradas na FDA,
apenas cerca de 7% têm registro de inspeção no banco de dados da
agência, segundo análise do ICIJ. A FDA nunca fechou nenhuma por
suspeita de atividades ilícitas.
Os dados também mostram que cerca de 35% dos ativos dos bancos de
tecidos registrados nos EUA não têm nenhum registro de inspeção no banco
de dados da FDA.
"Quando a FDA registra você, só é preciso preencher um formulário e
esperar uma inspeção", disse Duke Kasprisin, diretor médico de sete
bancos de tecidos nos EUA. "No primeiro ano ou dois, você pode funcionar
sem ninguém olhar para você." Isto é reforçado pelos dados, segundo os
quais um banco de tecidos típico opera por quase dois anos antes de sua
primeira inspeção da FDA.
"O problema é que não há supervisão. A FDA só exige que você tenha
registro", disse Craig Allred, advogado anteriormente envolvido em
litígios contra aindústria. "Ninguém vê o que acontece." A FDA e a
indústria "apontam o dedo um para o outro".
No entanto, na Coreia do Sul, o mercado de cirurgia plástica usa a supervisão da FDA como marketing.
No centro de Seul, capital do país, a Tiara Cirurgia Plástica explica
que os produtos feitos com tecidos humanos "são aprovados pela FDA" e
são, portanto, seguros.
Alguns centros médicos anunciam "AlloDerm aprovado pelo FDA" --um
enxerto de pele feito com cadáveres doados nos EUA-- para cirurgias no
nariz.
Le Do-han, o encarregado do tecido humano na FDA sul-coreana, disse que o
país importa 90% das suas necessidades de tecido humano.
O tecido cru é enviado a partir dos EUA e da Alemanha. Uma vez
processado, muitas vezes é reexportado para o México como produtos
manufaturados.
Apesar dos movimentos complicados de ida e vinda, Le Do-han reconhece que na prática não houve fiscalização adequada.
"É como colocar etiquetas na carne, mas eu nem sei se isso é possível para os tecidos humanos porque há muitos chegando."
EM EQUIPE
Em relatórios à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (SEC), a empresa
de capital aberto RTI permite vislumbrar o tamanho da empresa e seu
alcance global.
Em 2011, a empresa fabricou entre 500 mil e 600 mi implantes e lançou 19
novos tipos de produtos para medicina esportiva, ortopedia e outras
áreas. Dos implantes da empresa, 90% são feitos a partir de tecido
humano, enquanto 10% vêm de vacas e porcos transformados em sua fábrica
alemã.
A RTI exige que seus fornecedores de partes do corpo humano nos EUA e
outros países sigam as regras da FDA, mas a empresa reconhece que não há
garantias.
Em documentos enviados à SEC em 2011, a RTI disse que "não pode
garantir" que "os nossos fornecedores de tecido cumprem os regulamentos
destinados a prevenir a transmissão de doenças contagiosas" ou, "ainda
que sejam cumpridos, que nossos implantes não foram ou não serão
associado à transmissão da doença".
Como muitas das empresas de tecidos atualmente com fins lucrativos um
dia foram sem fins lucrativos, a RTI surgiu do Banco de Tecidos da
Universidade da Flórida, sem fins lucrativos, em 1998.
Documentos internos da Tutogen, uma empresa alemã de produtos médicos,
mostram que ela fez parceria com a RTI no início de setembro de 1999
para ajudar ambas as empresas a satisfazer suas necessidades crescentes
de matéria-prima adquirindo tecido humano na Europa Oriental.
As duas empresas adquiriram tecidos a partir da República Tcheca. A
Tutogen separadamente obteve tecidos em Estônia, Hungria, Rússia,
Letônia, Ucrânia e mais tarde na Eslováquia, segundo os documentos.
Em 2002, a imprensa tcheca publicou denúncias de que o fornecedor local
da RTI e da Tutogen obtinha tecidos indevidamente. Não se sugeriu que a
Tutogen, a RTI ou seus funcionários tenham feito algo impróprio.
Em março de 2003, a polícia da Letônia investigou se o fornecedor local
da Tutogen havia removido tecidos de cerca de 400 corpos num instituto
médico legal sem autorização.
Madeira e panos, substituindo músculos e ossos, foram inseridos nos
cadáveres para fazer parecer que estavam intocados antes do enterro,
segundo a imprensa local.
A polícia acabou denunciando três funcionários do fornecedor, mas
rejeitou mais tarde as acusações, quando um tribunal decidiu que não era
necessário o consentimento das famílias dos doadores. Novamente, não
houve sugestão de que a Tutogen agiu de forma inadequada.
Em 2005, a polícia ucraniana abriu a primeira de uma série de
investigações sobre as atividades dos fornecedores da Tutogen no país. A
investigação inicial não levou a indiciamentos.
A relação entre a Tutogen e a RTI, entretanto, tornou-se ainda mais
próxima no final de 2007, quando foi anunciada a fusão entre as duas
empresas. A Tutogen passou a ser uma subsidiária da RTI.
Funcionários da RTI se recusaram a responder ao ICIJ se sabiam das investigações policiais sobre fornecedores da Tutogen.
DUAS COSTELAS
Em 2008, a polícia ucraniana abriu nova investigação, verificando
acusações de que mais de mil tecidos por mês eram ilegalmente coletados
num instituto médico forense em Krivoy Rog e enviados, por meio de
terceiros, à Tutogen.
Nataliya Grishenko, a juíza de instrução do processo, revelou que muitos
parentes disseram ter sido levados a assinar termos de consentimento ou
que suas assinaturas foram forjadas.
O principal suspeito no caso --um médico ucraniano-- morreu antes de o
tribunal chegar a um veredito. O processo morreu com ele. As autoridades
alemãs fizeram uma declaração isentando a Tutogen de delitos.
A Tutogen "opera sob regras muito estritas das autoridades alemães e
ucranianas, bem como de outras autoridades reguladoras europeias e
americanas", disse Joseph Dusel, procurador-chefe em Bamberg, Alemanha,
ao serviço de notícias norte-americano Transplant News. "Eles são
inspecionados regularmente por todas essas autoridades em seus anos de
operação; e a Tutogen segue em boas condições com todos eles."
Dezessete fornecedores ucranianos da Tutogen foram sujeitos a inspeção
da FDA. As ações são anunciadas, segundo o protocolo, com seis a oito
semanas de antecedência.
Apenas um fornecedor --a BioImplant, de Kiev-- foi reprovado. Entre as
conclusões da inspeção de 2009: nem todos os necrotérios tinham água
quente corrente e alguns procedimentos sanitários não foram seguidos.
Os inspetores da FDA também encontraram deficiências em importações
ucranianas da RTI, ao visitar as instalações da empresa na Flórida.
A RTI tinha traduções para o inglês, mas não os originais das autópsias
dos seus doadores ucranianos, descobriram inspetores da FDA numa
fiscalização 2010. Frequentemente, eram os únicos documentos médicos que
a empresa usava para saber se o doador era saudável, diz o relatório da
inspeção.
A empresa disse aos inspetores que era ilegal, segundo a lei ucraniana,
copiar a autópsia. Mas, após a inspeção, ela começou a guardar o
documento original em russo, juntamente com sua tradução em inglês.
Em 2010 e 2011, os inspetores pediram à RTI que mudasse a forma de
rotular suas importações. A empresa obtinha tecidos ucranianos e enviava
à Tutogen, na Alemanha, para em seguida exportar aos EUA como produto
alemão. Embora a empresa tenha concordado com as mudanças, há indícios
de que ela pode ter continuado a rotular parte do tecido ucraniano como
sendo alemão.
Em fevereiro deste ano, a polícia flagrou funcionários de um escritório
forense em Mykolaiv Oblast carregando a parte traseira de um
micro-ônibus branco com recipientes de tecidos humanos. A filmagem
policial da apreensão mostra o material trazendo o rótulo "Tutogen. Made
in Germany".
Nesse caso, o serviço de segurança disse que os funcionários do
necrotério enganaram os parentes dos mortos para que permitissem o que
julgavam ser a coleta de uma pequena quantidade de tecido, aproveitando
seu momento de luto.
Documentos apreendidos --exames de sangue, um relatório de autópsia e
rótulos escritos em inglês e obtidos pelo ICIJ-- sugerem que os restos
mortais estavam a caminho da Tutogen.
Parte dos fragmentos de tecido encontrados no ônibus vieram de Oleksandr Frolov, 35, que tinha morrido de ataque epiléptico.
"No caminho para o cemitério, quando estávamos no carro fúnebre, notamos
que um dos sapatos escorregou do seu pé, que parecia estar solto",
disse sua mãe, Lubov Frolova, ao ICIJ. "Quando a minha nora tocou seu
pé, ela disse que estava vazio. Mais tarde, a polícia mostrou-lhe uma
lista do que havia sido retirado o corpo do filho.
"Duas costelas, dois calcanhares de aquiles, dois cotovelos, dois
tímpanos, dois dentes e assim por diante. Eu não consegui ler até o fim,
fiquei nauseada. Eu não conseguiria ler", disse ela. "Ouvi dizer que
[os tecidos] foram enviados à Alemanha para serem usados em cirurgias
plásticas e também para doação. Não tenho nada contra a doação, mas isso
deve ser feito de acordo com a lei."
Kateryna Rahulina, cuja mãe, Olha Dynnyk, morreu em setembro de 2011 aos
52 anos, mostrou documentos do inquérito policial. Os documentos
supostamente conteriam sua aprovação para retirar tecidos do corpo de
sua mãe.
"Fiquei em choque", disse Rahulina. Ela diz nunca ter assinado os
papéis, e era claro para ela que alguém havia forjado sua aprovação.
O departamento de perícia de Mykolaiv Oblast, onde os supostos
incidentes aconteceram, era, até recentemente, um dos 20 bancos de
tecidos ucranianos registrados pela FDA.
No site da FDA, o número de telefone de cada um dos bancos de tecidos é o mesmo.
É o número de telefone da Tutogen na Alemanha.
(KATE WILLSON, VLAD LAVROV, MARTINA KELLER, THOMAS MAIER e GERARD RYLE). Colaboraram MAR CABRA, ALEXENIA DIMITROVA e NARI KIM.
O Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos é uma rede
independente global de jornalistas que colaboram em reportagens
investigativas internacionais. Para ver vídeos, gráficos e mais
reportagens desta série, visite http://www.icij.org/. Esta reportagem foi apurada em colaboração com a National Public Radio (EUA).
Franz says: o dinheiro realmente é capaz de levar o homem ao extremo do desrespeito e da ganância. Não é a primeira vez que leio algo similar e, infelizmente, não será a última. O tráfico de órgãos, pessoas e influência é lucrativo e conta com o apoio de muita gente importante. Enquanto não houver uma política de controle e combate a este tipo de máfia, muitos corpos serão processados e transformados em produtos cosméticos ou matéria-prima para faculdades e outros fins mais sombrios.
A humanidade revela-se cada vez mais mesquinha e dedicada ao dinheiro, pouco se importando com sentimentos ou respeito, inclusive aos mortos.
Franz says: o dinheiro realmente é capaz de levar o homem ao extremo do desrespeito e da ganância. Não é a primeira vez que leio algo similar e, infelizmente, não será a última. O tráfico de órgãos, pessoas e influência é lucrativo e conta com o apoio de muita gente importante. Enquanto não houver uma política de controle e combate a este tipo de máfia, muitos corpos serão processados e transformados em produtos cosméticos ou matéria-prima para faculdades e outros fins mais sombrios.
A humanidade revela-se cada vez mais mesquinha e dedicada ao dinheiro, pouco se importando com sentimentos ou respeito, inclusive aos mortos.
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