Pular para o conteúdo principal

Resenha da Graphic Novel "Habibi" de Craig Thompson

Por Franz Lima
Eu sempre desconfio das palavras elogiosas das contra-capas ou abas internas dos livros. O mesmo princípio eu aplico aos pôsteres de filmes e às capas de Histórias em Quadrinhos.
Mas há ocasiões em que o instinto clama e não nego tal chamado. Uma dessas ocasiões ocorreu recentemente comigo ao entrar em uma livraria e me deparara com a obra "Habibi", de Craig Thompson. Eu folheei rapidamente suas páginas e comprei sem maiores referências. Cometi o que alguns chamam de "tiro no escuro", o que implica em afirmar que uma atitude foi tomada sem conhecimento da causa. Ok, eu atirei no escuro, mas acertei o alvo entre os olhos.
A ilustração imita o formato das letras
Habibi é a mais recente obra do autor de Retalhos. Contudo, ser um novo trabalho de um autor premiado, volto a reforçar, pouco quer dizer, pois uma obra-prima não é garantia de outra na sequência, principalmente com as pressões do mercado editorial para a entrega rápida de novos trabalhos após um sucesso de vendas.
O apuro na arte da Graphic Novel

Esta Graphic Novel, entretanto, foge à regra. Primeiro, o tempo para produção e disponibilização do mercado foi muito grande. Passaram-se  longos 8 anos até a finalização e disponibilização da obra no mercado. Crai produziu o que pode ser considerada sua obra máxima em uma reação ao processo de rejeição (fobia) aos islâmicos. Por ser uma cultura pouco conhecida e em constante processo de degradação por parte das mídias ocidentais, Craig Thompson optou por criar um verdadeiro conto de fadas sobre a cultura e o comportamento das pessoas em um país tipicamente islâmico. Mas não se deixem enganar: Habibi é um conto de fadas como os antigos foram. Há força, impacto e verdade nos desenhos e palavras da Graphic Novel. Tudo cativa e impressiona... desde os desenhos estilizados (bem similares aos dos livros árabes antigos, plenos de formas geométricas belíssimas) até o uso da caligrafia.

A história se passa nas proximidades da cidade de Vanatólia (creio que seja uma alusão a Anatólia, no oeste da Ásia - Turquia) e mostra a relação de duas crianças que desde muito cedo são obrigadas a viver uma dura realidade. De um lado, uma menina que é vendida por causa da fome e desemprego que assolam sua família. Do outro lado, um menininho que é feito escravo junto com sua mãe. Com o tempo, os dois são unidos pelo destino e por muitas situações tristes e dolorosas. Juntos, eles passam a viver do amor de um pelo outro, mas um amor puro, capaz de superar as sequelas que só a vida e suas surpresas podem trazer. 

São 672 páginas de arte em estado puro. Ilustrações belas, detalhadas e, ao mesmo tempo, simples na mensagem que passam. Não há excessos, apesar do refinamento da produção. O que vemos desde a primeira página é um fenômeno. A combinação de roteiro, letras, desenhos e, principalmente, um recado para um mundo cada vez mais crítico quanto aos islâmicos torna "Habibi" uma pérola de valor inestimável. 
Craig Thompson precisou de uma grande lacuna para transformar idéias em arte, porém é fácil afirmar que cada segundo de espera valeu a pena. 
Lendo "Habibi", tenho plena certeza que as ideias sobre os muçulmanos irão mudar muito. Sim, eles tem muitas e gritantes diferenças de comportamento e religiosidade em relação aos ocidentais. Também tem um trato diferente com as mulheres e, muitas vezes, podem ser vistos por nós como radicais. Todavia, uma coisa teremos certeza: são pessoas como nós, diferenciadas por uma religião, que sofrem com a fome, as intempéries, a pobreza e a desigualdade social. Não há muitas diferenças básicas quando comparamos as duas realidades das vidas dos orientais e ocidentais.  Compreendê-los é muito melhor que odiá-los, valendo-se de estereótipos que não são a expressão da verdade, mas a personificação de um rancor e um ódio que não precisam ser propagados.

Thompson mesclou passagens do Corão com o livro das Mil e Uma Noites, além de acrescentar a essa fórmula um pouco da realidade de muitos países muçulmanos. A intenção da obra não é estimular uma admiração inquestionável pelo povo islâmico. A intenção da obra é estimular nossa vontade em conhecer um pouco mais da história de um povo guerreiro, trabalhador e unido. Muito dessa admiração nós passamos a ter quando conhecemos melhor a dupla protagonista da obra: Cam e Dodola. 
Com um conteúdo político e emocional muito grande, "Habibi" é certamente a melhor surpresa de 2012, uma verdadeira benção para um povo que é perseguido e desprezado por uma grande parte da população ocidental, principalmente após os mais recentes ataques terroristas.
Lendo "Habibi", aprendi que é possível nutrir esperança em um futuro, qualquer que seja sua nacionalidade, fé ou cor da pele. Craig provou o quanto é difícil produzir uma arte tão complexa, porém é inegável que o resultado superou todas as expectativas. Cam e Dodola irão flutuar em minha mente e alma como exemplos de superação, fé e amor. Eles são carismáticos, erram e buscam por esperança, assim como nós o fazemos. Eles são assustadoramente reais, assim como todas as barreiras e sofrimentos que os atingem até o fim da obra.

Leia e saiba que as barreiras usadas para transformar pessoas em monstros podem ser diminuídas. Não importa qual seja a cor da pele, o credo ou o sexo. O que basta é termos união e amor pelo próximo, pois por trás de cada ser humano há uma história... nem sempre tão bonita, mas sempre real. Craig contou não só as histórias de um menino que vira homem e de uma menina que se torna mulher e guerreira, ele comprovou que a união e a dedicação a quem amamos pode mudar o mundo.
Um detalhe muito importante e que mostra o zelo do autor está nas ilustrações do profeta Maomé sem o detalhamento da face, tal como preconiza a religião islâmica. Perfeito.
Ah! Lembram-se que no início eu disse não valorizar as notas e elogios que constam no livro? Bem, esse merece ter sua apresentação lançada aqui:

“Destinado a se tornar um clássico instantâneo.” - The Independent

“Cortante.
Habibi é um enorme feito de pesquisa, cuidado e tinta preta, e um lembrete de que todos os ‘povos do livro’, apesar das diferenças, dividem um mosaico de histórias.” - Zadie Smith, Harper’s Magazine

“Thompson é o Charles Dickens do quadrinho.
Habibi é uma obra-prima única.” - Elle

“Uma história maravilhosa e cativante, mas também indescritível neste curto espaço, pois dentro dela há ainda milhares de outras histórias. É como uma caixa de joias à qual você retornará de novo e de novo.” -
The Guardian


Habibi - por Craig Thompson
Páginas 672
Acabamento: Brochura
Tradução: Érico Assis
ISBN - 9788535921311
Selo: Quadrinhos na Cia.
Valor: R$ 45,00 na Livraria da Travessa
Leia um trecho em pdf

Abaixo, como complemento, uma entrevista cedida pelo desenhista ao jornal Folha de São Paulo.  
Thompson trabalhando


Você lançou Retalhos em 2003 e, um ano depois, Carnet de Voyage (inédito no Brasil). Só voltou a publicar algo novo agora, em 2011, com Habibi. Sete anos é um longo período...Pode apostar. Comecei a escrever Habibi no início de 2004, após retornar de uma turnê de lançamento de seis meses de Retalhos - que incluiu a produção de Carnet de Voyage. No verão de 2005 já tinha uma primeira versão, mas o final não funcionava. Entre o outono de 2005 e 2006 revisei o rascunho e redesenhei centenas de páginas. Já estava desesperado, sempre chegando a becos sem saída. Em outubro de 2006, resolvi começar a desenhar as páginas finais na esperança de que o livro se revelasse enquanto produzia. Em julho de 2009 ainda não sabia como encerrar. Durante cinco meses me concentrei exclusivamente nos últimos capítulos. Ilustrei as últimas três páginas em agosto de 2010. O ano anterior ao lançamento foi todo por conta de edição, e promoção.
Ao longo desses sete anos, durante a produção de Habibi, você trabalhou a partir de alguma rotina?Gastei dois anos somente escrevendo o livro. Escrevo texto e imagens juntos. Tendo a me deixar levar fazendo os rascunhos com muitos detalhes - em parte por trabalhar já com a composição das cenas no rascunho, mas principalmente por depender de amigos que leem os rascunhos e contribuem no processo editorial.
Entre a sua primeira graphic novel, Good-Bye Chunky Rice, e Retalhos houve quatro anos de intervalo. Esse intervalo tão grande influencia no resultado final de suas obras?Quatro anos é um bom intervalo quando levo em conta que não fui pago para fazer esses projetos. Enquanto produzia Chunky Rice, era designer gráfico em tempo integral e, na época da Retalhos, eu ganhava a vida como ilustrador. Fazer quadrinhos nessa época era um hobby. Com Habibi eu finalmente tive o privilégio de ganhar dinheiro com quadrinhos e, mesmo assim, ainda levou mais tempo de produção do que os trabalhos anteriores! O trabalho final tira benefício desse tempo investido.
Como consta em Retalhos, você cresceu em um ambiente cristão. Como foi escrever sobre o mundo islâmico em Habibi tendo a formação cristã conservadora que teve?Esse foi o elemento que tornou mais acessível a escrita sobre o Islã. Interagindo com amigos muçulmanos, vi que a vida deles não era tão diferente do ambiente em que cresci. São os mesmos estilos de vida, as mesmas morais e, principalmente, as mesmas histórias como fundamentos de ambas as crenças. Foi o meu ponto de acesso. O Alcorão contém algumas das mesmas histórias da Bíblia, mas de forma menos linear e mais poética.
Desde 2001, com os atentados do 11 de Setembro, é muito fácil cair em clichês e estereótipos relacionados ao islamismo. Quais cuidados você tomou para que isso não acontecesse?De certa forma, o livro é uma reação à "islamofobia". Confiei em um grupo de amigos muçulmanos como consultor. Confiava nos instintos deles em relação a cenas e assuntos aparentemente delicados. Nunca houve desejo de evitar situações mais complicadas, como pode acontecer com autores preocupados além da conta com uma abordagem politicamente correta.
Você publicou três trabalhos pela Top Shelf e lançou Habibi pela Pantheon Books. Como foi essa transição?Não vivia de quadrinhos até Habibi, até mudar para uma grande editora de livros. A Pantheon investe em ampla distribuição e promoção para que o livro alcance público além da ilhada comunidade de quadrinhos. Sempre senti que os quadrinhos têm potencial para alcançar uma audiência muito mais ampla da que existe.
Qual análise você faz desse investimento de editoras tradicionais no mercado de quadrinhos?É provavelmente uma moda passageira. O meio editorial está sob tanta pressão que os editores estão apostando em qualquer artifício que atraia novos leitores. Talvez as graphic novels possam durar por mais tempo como suporte para impressão do que a prosa. A prosa impõe um distanciamento técnico do leitor: é facilmente adaptável para um e-reader. Já as graphic novels contêm o traço do autor - os textos e desenhos são feitos à mão, criando uma certa intimidade com o leitor.
Você fez o prefácio de Daytripper, dos brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá. O que acha do trabalho de ambos? Conhece algum outro artista vindo do Brasil além dos gêmeos?Amo o trabalho do Moon e do Bá. Eles fazem livros sensíveis, sexy e com muita humanidade. Elementos que quadrinhos precisam desesperadamente. Um cartunista brasileiro que procuro estar de olho é o Rafael Grampá. Há muitos fãs secos por mais trabalhos dele nos Estados Unidos.
Você alcançou sucesso de público e crítica tanto no mercado europeu como no norte-americano, ambientes com percepções diferentes sobre quadrinhos. A que atribui esse sucesso?O meu trabalho é influenciado por europeus - especialmente pelos autores franceses publicados pela editora L’Association nos anos 1990. Acho o sucesso de Retalhos uma anomalia. Produzi como uma reação ao quadrinho típico norte-americano. É uma história em quadrinho gigante em que, basicamente, nada acontece. Foi na hora certa. Na época, crescia o gosto pelas coletâneas em detrimento de publicações homeopáticas de poucas páginas.
No seu blog você deixa no ar a possibilidade da sua próxima obra ser um livro infantil, de ensaios ou um trabalho erótico. Já sabe qual será o escolhido?Estou trabalhando nos três ao mesmo tempo. Há uma flexibilidade para pular entre os livros e evitar bloqueios criativos. Mas é possível que acabe o livro infantil primeiro.
O período de produção desses próximos trabalhos também vai levar quase uma década?O livro de ensaios e o infantil devem ter 200 páginas cada um. O livro erótico deve ser menor, com 48. Pretendo terminar os três em quatro ou cinco anos. Vamos ver.

O Autor: Nascido em 1975, Thompson foi criado no Wisconsin, EUA. Em 2004 venceu os principais prêmios da indústria de quadrinhos norte-americana por Retalhos. Mantem fãs e leitores em dia com seu trabalho no blog www.blog.dootdootgarden.com

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bethany Townsend, ex-modelo, expõe bolsa de colostomia de forma corajosa.

Bethany Townsend é uma ex-modelo inglesa que deseja, através de sua atitude, incentivar outras pessoas que sofrem do mesmo problema a não ter receio de se expor. Portadora de um problema que a atinge desde os três anos, Bethany faz uso das bolsas de colostomia  que são uma espécie de receptáculo externo conectado ao aparelho digestivo para recolher os dejetos corporais, e desejou mostrar publicamente sua condição.  Quero que outras pessoas não tenham vergonha de sua condição e é para isso que me expus , afirmou a ex-modelo. Bethany usa as bolsas desde 2010 e não há previsão para a remoção das mesmas.  Eu, pessoalmente, concordo com a atitude e respeito-a pela coragem e o exemplo que está dando. Não há outra opção para ela e isso irá forçá-la a viver escondida? Jamais... Veja o vídeo com o depoimento dela. Via BBC

Suzane Richthofen e a justiça cega

Por: Franz Lima .  Suzane von Richthofen é uma bactéria resistente e fatal. Suas ações foram assunto por meses, geraram documentários e programas de TV. A bela face mostrou ao mundo que o mal tem disfarces capazes de enganar e seduzir. Aos que possuem memória curta, basta dizer que ela arquitetou a morte dos pais, simulou pesar no velório, sempre com a intenção de herdar a fortuna dos pais, vítimas mortas durante o sono. Mas investigações provaram que ela, o namorado e o irmão deste foram os executores do casal indefeso. Condenados, eles foram postos na prisão. Fim? Não. No Brasil, não. Suzane recebeu a pena de reclusão em regime fechado. Mas, invariavelmente, a justiça tende a beneficiar o "bom comportamento" e outros itens atenuantes, levando a ré ao "merecido" regime semi-aberto. A verdade é que ela ficaria solta, livre para agir e viver. Uma pessoa que privou os próprios pais do direito à vida, uma assassina fria e cruel, estará convivendo conosco, c

Pioneiros e heróis do espaço: mortos em um balão

* Há exatamente 100 anos subir 7400 metros, num balão, era um feito memorável. Consagrados por isto, três franceses - Sivel, Crocé-Spinelli e Tassandier - resolveram tentar uma aventura ainda mais perigosa: ultrapassar os 8 mil metros de altitude. Uma temeridade, numa época em que não existiam os balões ou as máscaras de oxigênio e este elemento precioso era levado para o alto em bexigas de boi com bicos improvisados. Uma temeridade tão grande que dois dos pioneiros morreram. Com eles, desapareceu boa parte das técnicas de ascensão da época que só os dois conheciam. Texto de Jean Dalba Sivel No dia 20 de abril de 1875, mais ou menos 20 mil pessoas acompanhavam à sua última morada, no cemitério de Père-Lachaise, os despojos de Teodoro Sivel e de Eustáquio Crocé-Spinelli - os nomes, na época da produção do artigo, eram escritos em português para facilitar a leitura e "valorizar" nossa própria cultura. A grafia correta dos nomes é Théodore Sivel e Joseph Eustache Cr