Mais do que uma entrevista, este post mostra o quanto é necessário dedicar-se para alcançar um nível de excelência reconhecido amplamente. Mamede Mustafa Jarouche é um nome extremamente requisitado quando o assunto é tradução do árabe para o português, mas nem tudo foi sempre assim. Conheçam mais da trajetória e do sucesso de Mamede, o tradutor de As Mil e Uma Noites, entre outros.
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Ao centro, Mamede Mustafa Jarouche, ao conquistar o primeiro lugar na categoria "Tradução" por "O Leão e o Chacal Mergulhador" |
Ao
conversar com o professor da USP Mamede Mustafá Jarouche, é notável sua
paixão pelo mundo árabe. Filho de imigrantes libaneses, ele desde cedo
conviveu com a língua e os costumes do Líbano em sua família. Além
disso, estudou e trabalhou em países como Arábia Saudita, Egito, Líbia e
Iraque. Politizado, Jarouche – graduado em letras pela USP, com
mestrado e doutorado na mesma área – se agita ao comentar a situação
política dos países árabes, que conhece de perto, pois esteve no Egito
no dia 25 de janeiro de 2011, quando começaram os protestos populares no
país (ele publicou artigos sobre isso no dia 6 e no dia 20 de fevereiro de 2011 na Folha de S. Paulo).
Mas ao falar sobre tradução e literatura árabe, se acalma e demonstra
uma grande satisfação pessoal. No momento ocupado com a leitura e
tradução de um texto político árabe do século XIII, Jarouche foi
responsável pela recente tradução direta, da língua árabe para o
português do clássico As mil e uma noites. E afirma: “ A tradução literária impõe um conhecimento amoroso da estética das línguas com as quais você trabalha”.
ComCiência –
O senhor convive com a língua árabe desde cedo por causa de sua
família, que é de imigrantes libaneses. Como e quando o senhor começou a
estudar a língua árabe?
Mamede Mustafa Jarouche –
Foi no começo da década de 1980. Fui estudar árabe graças a uma bolsa
que ganhei do governo da Arábia Saudita em 1981. Mas ainda não havia o
interesse acadêmico, fui apenas para estudar a língua. Depois que voltei
de lá, vislumbrei a possibilidade de estudar árabe na Universidade de
São Paulo (USP). Durante o período de graduação na universidade, fui
trabalhar no Iraque como tradutor e, depois da graduação, fui para a
Líbia para também trabalhar. Lecionei árabe na USP como professor
voluntário, sendo contratado em 1992, quando também conclui meu mestrado
e em seguida meu doutorado. Depois fui estudar árabe novamente, dessa
vez no Egito. O caminho (no estudo do árabe) aconteceu naturalmente
.
.
ComCiência – Em qual situação se encontrava o estudo da língua árabe no Brasil no momento que o senhor começou a sua carreira?
Jarouche –
O estudo da língua árabe no Brasil era muito incipiente. Já havia
cursos de árabe, sendo os dois primeiros na USP e na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mas eram cursos vistos como
“perfumaria”, ou seja, não havia nenhuma exigência, nem cobrança, nem
demanda científica e acadêmica por parte dos alunos. Ele permanecia a
nível de curiosidade. Mas o grande salto qualitativo do estudo da língua
árabe ocorreu a partir deste século, do século XXI.
ComCiência – E qual foi o principal motivo para esse avanço recente do estudo do árabe?
Jarouche –
Tem muito a ver com a nova participação do Brasil no cenário mundial.
Graças à exigência da pluralidade e à abertura do relacionamento com os
países do Oriente e Oriente Médio. A partir deste século, começou a
haver uma demanda e uma importância maior no relacionamento do Brasil
com outros países, fora da esfera da Europa Ocidental e dos Estados
Unidos. Quando o presidente Lula assumiu, sua primeira viagem
internacional foi para o Oriente Médio. Outro fator, infelizmente, foi o
atentado de 11 de setembro de 2001.
ComCiência – Isso despertou uma curiosidade do brasileiro em relação à cultura árabe?
Jarouche –
Também. Acho que a principal razão para o aumento da curiosidade do
Brasil, e do mundo ocidental, em relação à cultura árabe se deve à
questão comercial, que expandiu muito, desde a década de 1970. Mas o
atentado trouxe uma visibilidade maior para o mundo árabe. Houve muito
mais informação e demanda por informação sobre os países árabes. Hoje há
vários centros universitários que estudam a língua árabe, como a USP, a
Unicamp, a UFRJ e outros centros, como a Universidade Federal de Santa
Catarina, evidenciando o interesse acadêmico e intelectual pela língua
árabe.
ComCiência – O senhor acredita que o interesse pela língua e cultura árabe pode continuar se expandindo no Brasil?
Jarouche –
Acredito que sim. Agora, com a crise política que vivem os países
árabes, o interesse deve se acentuar ainda mais. Hoje temos diferentes
setores políticos que acompanham o mundo árabe. Esse interesse, somado à
ascensão do Brasil, só tende a se fortificar, trazendo mais contato,
por interesses políticos e econômicos.
ComCiência –
É notável o seu interesse pelo aspecto político das relações entre
Brasil e Oriente Médio. Ele ocorreu naturalmente ou o senhor passou por
algum tipo de experiência envolvendo a política árabe?
Jarouche –
Quando eu era aluno, era militante de esquerda, afinal cresci no Brasil
da ditadura militar. Por isso, cresci nesse ambiente politizado, de
militância. Além disso, sempre tive curiosidade pelo mundo árabe por ser
descendente de libaneses. Quando era jovem, o Líbano, a nação da minha
família, vivia uma revolução. Já existia também a questão da Palestina.
Por coincidência estava no Egito no dia do estouro da revolução, no dia
em que as pessoas foram às ruas e, por isso, acompanhei todo o processo.
Foi um episódio muito emocionante de vivenciar.
ComCiência – Focando agora na sua carreira de tradutor, como é o seu trabalho e como ele começou?
Jarouche –
Acho que o fator mais importante que pode ser destacado sobre meu
trabalho é o fato de que as traduções ocorreram direto do árabe para o
português. Isso é muito curioso porque não existia esse padrão no
Brasil, as traduções ocorriam da língua oficial para uma intermediária
e, depois, para o português. Quando comecei, as traduções eram feitas da
língua original para o inglês, espanhol ou francês, para depois ser
traduzido ao português. Depois dessa inserção do Brasil no mundo árabe e
em outros países, o brasileiro passou a exigir a tradução direta, o que
evidencia um novo comportamento dos leitores brasileiros. Hoje muitos
leitores questionam a tradução e conferem se ela é feita diretamente da
língua original. Eu fico muito contente de perceber que meu trabalho
contribuiu para isso, fico muito feliz. Mas repito: isso só foi possível
devido à nova situação em que se encontra o Brasil no mundo.
ComCiência – Quais as diferenças da tradução literária para a tradução científica?
Jarouche –
A linguagem acadêmica tende a ser mais padronizada em diferentes
línguas e, por isso, não ocorre muita perda de significado na hora da
tradução, o que é diferente da linguagem literária, em que existem
muitas ferramentas como metáforas e outras. A literatura se baseia muito
em recursos, como a metalinguagem e a metáfora, que a linguagem
científica não utiliza. O cientista não pode descrever o DNA com
metáfora, ele tem que ser preciso. Já a linguagem literária é a
linguagem do questionamento, da alusão, da fantasia. A linguagem
científica é objetiva.
ComCiência – O senhor acredita que a tradução de um clássico como As mil e uma noites possa ser uma forma de divulgação cultural?
Jarouche – Talvez seja uma divulgação de um conhecimento. Mas com certeza é a divulgação de uma cultura, no caso, a cultura árabe.
ComCiência – Como foi a tradução de As mil e uma noites e de outros livros árabes?
Jarouche –
Foi muito gostoso, foi uma experiência muito agradável e prazerosa. É
um livro de muita ação. O texto não para em descrições, acaba se
tornando uma leitura muito prazerosa, porque você acaba desfrutando do
livro. Às vezes você trava em uma questão em particular, uma diferença
gramatical ou de sentido, isso acaba dando trabalho e se torna
cansativo, mas no geral foi muito gostoso de fazer. Outras obras que
traduzi também são muito interessantes, como Kalila e Dimina, 101 noites, O tigre e o raposo. Foram nove livros no total. E todas as obras foram muito gostosas de traduzir.
ComCiência – Para finalizar, para se tornar um bom tradutor, o que o senhor recomenda?
Jarouche –
Que vivencie a cultura e o país de origem da língua. Você tem que ter a
sensibilidade de captar naquela língua que você está traduzindo os
significados e saber reproduzir isso na sua língua. A tradução literária
impõe um conhecimento amoroso da estética das línguas com as quais você
trabalha.
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