Por: Franz Lima.
Escorrego em meu próprio sangue. A voz é quase inaudível, fruto da dor e do medo. Em um canto, ele me contempla quase com pena, assim como faria um dono diante de seu cão que fez uma bagunça. Mas também há raiva em seus olhos, pois a distância entre a dó e a penalização é muito curta. Mesmo machucada, procuro nos recantos mais íntimos da minha mente um motivo para que ele ter feito isso. Será que inconscientemente eu provoquei essa agressão? Será que realmente minhas roupas são indecentes? Eu olhei mesmo com volúpia para seu amigo? Talvez... não sei dizer.
Passo a noite encostada no canto da parede. O frio do ar parece estar todo concentrado onde estou sentada. Os lábios e os olhos doem com uma intensidade maior que os demais lugares onde ele me atingiu. Ficamos próximos um do outro durante toda a madrugada. Eu, tomada pelo medo e as dúvidas. Ele, pelo ódio. Mas o tempo cura tudo.
A manhã chegou. Ele já está se arrumando para trabalhar. Devo ter cochilado. Ainda não tenho coragem para me levantar.Ouço o som do liquidificador e sinto o cheiro de torradas. A fome me atinge quase com tanta força quanto os socos que recebi na noite anterior. Será que ele está mais calmo? Tento levantar, mas as dores me forçam a ficar no chão.
Ouço passos rápidos. Ele se aproxima e fica com o rosto próximo ao meu. Sinto sua respiração próxima a mim e me encolho.
- Olha pra mim. - ele determina. - Olha e ouça o que vai fazer. Eu vou para o trabalho e quero que você ligue para o seu. Diga que caiu e está em repouso. Não foi nada grave, certo?
- Eu falo, pode deixar. - respondo, temendo que ele me bata de novo.
Meu rosto é pressionado por sua mão. Sinto o tremor dos dedos, enquanto ele me força a olhar direto para seus olhos.
- Se uma única palavra do que aconteceu ontem for dita... uma só! Eu prometo que vou te mostrar um novo tipo de dor. E tem mais. Ou você muda seu jeito de puta e vira uma mulher decente ou eu vou livrar o mundo de tralhas do seu tipo. Entendeu?
- Claro, mas...
O tapa me atinge com muita força. A boca é cortada quando os dentes se fecham sobre a parte interna. Dói demais.
Ele se levanta. De baixo, eu o vejo como um gigante. A tensão fica ar e, novamente, me encolho. Não quero apanhar de novo, meu Deus.
- Bem, estamos conversados. Se alguém souber disso, vou deixar claro, você vai pagar pela ousadia. Entendeu?
Minha resposta se resume a um leve balançar de cabeça. Não tenho coragem de falar.
Meu marido se vira e sai de casa. Ouço o som do carro sendo ligado e só me acalmo alguns minutos depois de sua partida. A casa está silenciosa e ainda há no ar o cheiro da vitamina e das torradas. Eu deito no chão e choro.
Não sei quanto tempo se passou. Lentamente, me levanto. As dores persistem e quase caio quando as pernas fraquejam. Na verdade, o que mais dói é a vergonha. Vergonha da minha covardia e das dúvidas que me atingiram. Mas deve haver uma solução. Não sei o que transformou aquele homem tão bom em um monstro, mas não vou desistir tão fácil. Eu quero minha vida de volta. Deve haver um jeito de trazê-lo à sanidade. Ele só está doente, reflito.
O resto do dia transcorre entre ligações, limpeza da casa (o sangue é difícil de remover, principalmente na parede) e curativos. Tomei analgésicos para suportar as dores que, como previ, só iriam amenizar. Fiz tudo que ele pediu. Hoje a noite deve ser diferente. Não há motivos para eu apanhar.
Preparei um jantar bom. Bifes, arroz à grega, feijão fresquinho. Também fiz um suco de abacaxi com hortelã, do jeito que ele gosta. Não há porquê dar algo errado, penso.
A noite chega e, com ela, ele. A porta do carro é batida com força. A porta da sala é aberta com brutalidade. Nem o cheiro da comida fresca ou a casa arrumada parecem agradá-lo.
Ele passa direto por mim e vai para o banho. Ouço-o socar as paredes enquanto se banha. "Deus, não permita que aconteça de novo" - imploro em minha prece silenciosa.
Ele sai e descubro que nem sempre as preces são ouvidas e atendidas.
O ritual se repete. Ele me bate devagar, mas constantemente. Cada tapa mina minhas forças, minha moral e meu orgulho. Cada gota de sangue que cai no chão ou respinga nos móveis e paredes é motivo de vergonha. Eu peço, imploro, choro e me humilho para que aquilo cesse. Nada adianta. O final é ainda mais vergonhoso, pois sou forçada a transar, enquanto ele dá socos por todo meu corpo. Cada novo hematoma parece lhe dar prazer, aumentar o tesão. O estupro cessa. A humilhação não. Ele ri e urina em mim, enquanto dá desculpas para fazer tamanha barbaridade. Em meu íntimo, dou graças a Deus por não termos filhos. O único choro que ouço é o meu.
A noite transcorre entre socos, chutes e palavras baixas, mas marcantes. Minhas origens são questionadas, minha moral é posta no lixo, meu futuro é prometido à morte. Ele insiste em dizer que sou culpada. Mas culpada de que? O que fiz para merecer isso?
No mesmo canto da noite anterior, agora já sujo pelo sangue, urina e lágrimas, adormeço. O mesmo frio me atinge. A mesma humilhação me toma. Entretanto, esta é uma noite diferente. Eu sonho...
- Filha?
Abro os olhos e vejo minha mãe. Impossível, pois ela morreu há quase quinze anos. Só que lá está ela. Suas mãos estão esticadas e eu as pego. Ela me ajuda a levantar. Ela me ajuda a limpar o corpo, a recuperar um pouco da dignidade. Seco as lágrimas em seu ombro.
- Mãe, eu juro que não fiz nada...
- Calma, eu sei.
- Será que ele vai parar? Eu não quero morrer. Não quero que ele continue. Porém também não quero perder a pessoa por quem me apaixonei.
- Filha - ela sussurra em meu ouvido - você o perdeu desde o primeiro momento em que ele a bateu. O amor morreu quando o respeito acabou. Entende?
Minha mãe me leva até o sofá e ouço o som do ronco dele. Ele dorme profundamente, indiferente ao que fez. Há uma garrafa de bebida no chão, vazia. Acho que ele não acordará tão cedo.
Silenciosamente, ela olha para dois objetos. Um é o telefone. O outro, uma longa e afiada lâmina. Ela não sorri. Ela não diz nada. Ela apenas olha em meus olhos e compreendo que esta será a última noite de loucura que passarei na minha vida. É a hora de acabar de vez com o sofrimento.
Desperto e ouço o ronco dele. O sono é profundo. Estou confusa e olho ao redor para encontrar minha mãe. Nada. Apenas um sonho. Levanto vagarosamente e vou até o sofá. A garrafa, tal como no sonho, está no chão, vazia. Vou até o quarto e vejo o que já sabia: ele não acordará. Está bêbado e dorme profundamente. Lembro do que sonhei e olho para a faca e o telefone. É hora de acabar com isto.
Meia hora depois, assim como pedi, uma viatura da polícia chega. As sirenes estão desligadas e eu já estou vestida. As mesmas roupas que foram arrancadas à força e sujas com meu sangue. Em minha mão, uma faca longa e afiada. Eles pedem que eu a jogue no chão. Eu atendo. Meu olho esquerdo está fechado, inchado pelas pancadas. O policial se aproxima e questiona sobre o que ocorreu. Eu digo tudo. Abro meu coração como jamais fiz na vida. Cada palavra é molhada por uma lágrima, mas não de dor. Há apenas a humilhação latente, fruto de meses de tortura. Hoje, acredito, tudo chegou ao fim.
Ele é despertado e algemado. Preso em flagrante por estupro, espancamento e tortura. Também é acusado de cárcere privado. A embriaguez não o permite compreender o que ocorreu, porém os dias que se seguem dão lucidez aos meus atos. Eu tive a coragem de pedir socorro, de implorar por resgate. Eu interrompi um ciclo que estava fadado a acabar na minha morte. Mesmo segurando uma faca com as mãos trêmulas, tive a iniciativa de ligar para a polícia e denunciar. As evidências estavam espalhadas em cada cômodo da casa. As evidências estavam espalhadas em cada centímetro do meu corpo.
Fui para a capa de jornais. Tive minha humilhação divulgada em todas as mídias possíveis. Mas valeu. O monstro que um dia chamei de amor foi preso. Muitos me disseram que, para ele, este era o fim. Estupradores não duram em prisões. Era a hora de receber a retribuição por seus atos. Fiquei dias imaginando-o sentado, nu, em um canto da cela. Muitos o usariam. Muitos o espancariam.
Retomo minha vida. Parto para outra cidade, mudo o cabelo, mudo as roupas. Nunca mais serei a mesma. Na verdade, não quero jamais voltar a ser aquela criatura frágil e omissa. É hora de andar com a cabeça erguida. Fui estuprada, espancada e humilhada. Só há um porém: ele jamais atingiu o amor que sinto por mim. Ele tocou cada milímetro do meu corpo, mas nunca quebrou minha alma. Lá, em meu âmago, eu continuo inviolável.
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