Conto ‘A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras’ do autor de ‘Sandman’ ganha uma edição de luxo no Brasil
por Fabiano Ristow, em O Globo
RIO — Uma lenda escocesa fala de uma caverna incrustada nas Black
Cuillins — também conhecidas como Montanhas Negras —, na Ilha de Skye,
em que o viajante encontra ouro pronto para ser levado livremente, sem
qualquer empecilho. Mas poucos estão dispostos a executar a façanha, por
mais tentadora que seja. É que, dizem, aquele que volta com o ouro no
bolso deixa no local um pedacinho de sua alma, tornando-se um pouco mais
maligno.
Autor de “Sandman” e “Deuses americanos”, Neil Gaiman nunca tinha se
deparado com essa história. Isso é particularmente surpreendente,
considerando que estamos falando do homem que escreveu quase cem livros,
entre ficção e não ficção, contos e romances, muitos enraizados em
conceitos mitológicos e folclóricos. A lenda o inspirou a escrever “A
verdade é uma caverna nas Montanhas Negras”, conto originalmente
publicado na antologia “Stories”, de 2010, que agora ganha uma edição de
luxo pela Intrínseca com ilustrações de Eddie Campbell (o mesmo de “Do
inferno”, HQ de Alan Moore).
“A verdade…” foi recitado pelo próprio Gaiman num festival no Sydney
Opera House, chamado Graphic, com projeções dos desenhos de Campbell e
trilha sonora composta pelo quarteto de cordas FourPlay. O espetáculo
passou por Londres, Tasmânia e São Francisco, culminando numa
apresentação num lotado Carnegie Hall, em Nova York, ano passado.
Como o conto se beneficia desse formato multimídia?
Uma das coisas que sempre tento fazer, como escritor, é entrar na
cabeça das pessoas. Tentei fazer isso de uma maneira que lembrasse
tradições antigas. Histórias como “Odisseia”, da Grécia, e “Conto dos
dois irmãos”, do Egito, foram proclamadas. Além disso, eu queria fazer
um experimento: e se tivéssemos ilustrações enormes? E se eu estivesse
lá contando uma história? Essencialmente, é como se o público
vivenciasse um filme dentro de suas mentes. Repetimos a experiência meia
dúzia de vezes, e fomos aplaudidos de pé. Incrível.
Na história, quem leva o ouro da caverna perde o prazer pela vida. Você acha que o dinheiro faz isso com uma pessoa?
Normalmente, em contos, cavernas cheias de ouro mágico também são
habitadas por dragões e coisas assim. Não era o caso aqui. Achei
fascinante, em parte por causa da ideia de que algo pelo qual você não
lutou para conseguir pode tirar uma parte essencial de você. É verdade
que o dinheiro faz isso com as pessoas. Conheço casos. Para alguns, a
riqueza lhes tirou o prazer pela vida. Para outras, era apenas algo que
recebiam por fazer o que amavam. Penso em pessoas como o meu amigo Terry
Pratchett (autor da série “Discworld”, morto em março, com quem Gaiman
colaborou no romance “Belas maldições”, de 1990). Ele era um dos homens
mais ricos da Inglaterra, mas jamais escreveu por dinheiro. Escrevia
porque amava livros.
O conto é sombrio e fantasioso, e, portanto, encaixa-se com
outras obras suas, inclusive as infantis. Por que escrever sobre isso?
Já vivemos num universo em que coisas sombrias acontecem — e boas
também. Uma das obrigações de um escritor é refletir esses dois tipos de
mundo. Disto isso, imagine se você escrever uma história assim: “Era
uma vez um homem feliz que acordava feliz todos os dias, e tudo estava
perfeitamente ótimo com ele, e, à noite, deitava-se superfeliz em sua
cama. Sete anos depois, ele morreu feliz”. Os leitores se sentiriam
enganados. A maioria das ficções é sobre personagens em busca de
objetivos, tendo que solucionar problemas. Se essas histórias significam
alguma coisa, é sobre ter esperança. Para se ter esperança, é preciso
do desespero.
Você já colaborou com vários ilustradores. Por que Eddie Campbell dessa vez?
Os traços dele são simples, não são afetados. Ele é incrivelmente
preciso. Mas há também o fato de ele ser escocês. Eu não queria sentir
que estava lidando com um palco, com pessoas fantasiadas. Os dois
protagonistas precisavam vestir roupas que usariam na vida real, e não
parecer que acabaram de sair de uma loja de fantasias.
Você sempre citou autores que o influenciaram, como J.R.R. Tolkien e Lewis Carroll. Destacaria algum escritor contemporâneo?
O problema é que, quando você tem 54 anos, é difícil ser
influenciado. Não digo mais: “Você mudou a maneira como vejo o mundo!”,
porque a essa altura minha visão de mundo é bem consolidada. Dito isso,
eu ainda consigo ler um autor e pensar: “Eu amo o que você faz.”
Hoje você influencia as pessoas.
Isso! Escritores jovens, na casa dos 20 ou 30 anos, leram-me durante
suas vidas inteiras. Não é fascinante? De qualquer forma, hora ou outra
leio algo que me dá uma sensação nova.
Tipo quem?
Por exemplo, David Mitchell (de “Cloud Atlas”). Eu pensei: “Eu te
amo. Você é como eu quando eu era jovem”. Uma das razões pelas quais
gosto de celebrar autores é que ninguém existe num vácuo. Nenhum
artista, seja músico ou escritor, inventou a si próprio. A maioria
começou de algum lugar. Somos a soma de todas as nossas influências. É
muito simples eu dizer que tais pessoas me formaram aos 10 ou 20 anos.
Mas, aos 25, eu me sentia como um grande bolo já assado. É difícil,
hoje, inserir ingredientes no bolo.
E autores brasileiros, já leu algum?
Vamos ver… (pausa) Sei que já li. Quando fui ao Brasil,
recomendaram-me músicos. Ouvi Caetano Veloso e Marisa Monte. O mesmo
aconteceu com romancistas e contistas, como… Fonseca? Ele é brasileiro,
né?
Rubem Fonseca?
Se eu lembrar, aviso (logo após a entrevista, Gaiman disse para seus
2,2 milhões de seguidores no Twitter que teve um “branco”, recebendo dos
fãs brasileiros dezenas de sugestões).
O mercado editorial é diferente do de quando você começou. A
internet abriu a possibilidade da autopublicação, por exemplo. Ainda
assim, você acha que há gente talentosa que não tem o reconhecimento
merecido?
O que acontece de fato é que estamos num período de transição. Até
dez anos atrás, todos conheciam as regras para ser publicado: encontrar o
“guardião”, ou seja, o editor ou agente que o deixaria entrar pelo
portão e publicaria seu trabalho. Hoje, com um clique, você alcança,
literalmente, bilhões de pessoas. A figura do guardião está menos
relevante, mas a importância de encontrar conteúdo bom é a mesma. Mil
livros podem ser escritos, mas apenas cinco serão interessantes. Como
achar o que vale a pena?
Isso é ruim?
Não necessariamente. Simplesmente é assim. Antes, o desafio era ir ao
deserto e encontrar a flor, agora é ir à floresta encontrar a flor.
Obrigado pela entrevista.
Sinto tanta falta do Brasil. Não vou aí desde a Flip, em 2008. E
preciso levar a minha mulher (a cantora Amanda Palmer), que nunca foi.
Sei que amam a música dela aí. Ela é maravilhosa.
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