Pular para o conteúdo principal

Rugas (Arrugas – 2011). Perfeita e emocionante adaptação da obra-prima de Paco Roca


O que realmente enxergamos ao nos depararmos com um idoso (pode ser honesto, você também chama de velho)? Será que vemos um indivíduo que tem experiência e sobreviveu a coisas que a maioria de nós, mais novos, sequer imagina ou, sendo mais sinceros, vemos apenas uma pessoa que fica mais e mais incapacitada com o passar dos anos?
Peço que me perdoem pelo começo brusco e melancólico neste post, mas os tempos atuais não são fáceis (estamos vivendo a pandemia de Covid-19, uma espécie de peste negra do século XXI que tem como principais vítimas os ve… idosos). Hoje eu me deparei com a sugestão de uma HQ diferente, cuja abordagem central estaria focada na jornada de um idoso com Alzheimer. Isso, infelizmente, me fez lembrar de um senhor que foi casado com a avó da minha esposa (ele não era o avô verdadeiro, entenderam?), um homem cujos quatro últimos anos foram uma verdadeira epopeia para continuar vivo. Anos atrás, infelizmente, ele foi vítima de um AVC que deixou grandes sequelas físicas e mentais. Sem parentes de sangue, restou a uma de suas “netas” conseguir um lugar onde ele pudesse passar o tempo que lhe restasse com dignidade. Esse local, serei honesto, foi um asilo para velhinhos que não era ruim, porém estava longe de ser um resort. Lá, ele foi mantido vivo (novamente estou sendo honesto) e há dois dias faleceu. Em tempos de Covid, ele foi velado por apenas uma pessoa (a já citada “neta”), pois todos estão com medo de sair. Essa “neta” foi a emissária de nossas despedidas e, assim, encerrou-se a trajetória de um homem digno que teve seus últimos e árduos anos cumpridos em uma prisão onde “seria tratado com dignidade e amor”. Será?
Mas volto ao tema central do post, a obra chamada Rugas (Arrugas é o título original em espanhol). Não me refiro à HQ original, mas ao longa-metragem de animação que é baseado na graphic novel de Paco Roca.

A trama relata a vida de um homem chamado Emílio, um idoso com traços de Alzheimer. Ele foi bancário e não é incomum que seu passado como tal volte. O convívio de Emílio com seu filho e sua nora já está insustentável e, por isso, o filho opta por colocar o idoso em uma casa de repouso, um asilo.
O local é limpo, organizado e até bonito, porém tudo isso serve para disfarçar a realidade: a de que um filho não quis ficar seu pai para evitar problemas.
O asilo tem uma rotina própria que comprova uma desconfiança da minha parte: estar isolado é ruim; estar isolado e impedido de sair é péssimo, mas isso ganha ainda mais impacto quando se está nessas condições ao lado de pessoas estranhas.
Emílio tem “flashbacks” que o levam de volta aos áureos tempos onde a doença ainda não o havia alcançado. Ele sente saudades e fica perdido nesses pensamentos. Isso, devo ser ainda mais honesto, me fez refletir sobre a realidade do velhinho que morreu há poucos dias. Eu percebi – com maior clareza – uma parcela do sofrimento dele. Quantas noites esse homem não deve ter tido a certeza de que foi abandonado, mesmo que nós saibamos que não havia outra opção?
Ou havia?
Emílio faz novos amigos no asilo. Um deles é Miguel, um homem que morou na Argentina e voltou para a Espanha décadas atrás. Miguel tenta viver da melhor forma possível nas condições que tem, mesmo que isso inclua explorar os velhinhos que não sabem o que fazem. Em suma, ele extorque dinheiro desses velhos, sempre com a desculpa de que nada farão com o dinheiro. Mas, por favor, não o julguem. Há muito mais do que um simples trambiqueiro velho.
Acompanhamos o decorrer dos dias de Emílio e descobrimos que um dos pontos fortes do ser humano está na capacidade de adaptação. Mesmo com alguns contratempos, ciente de que foi descartado pela família, ele ainda tenta ter uma rotina e viver.
Entretanto, nada é simples quando ganhamos a certeza de que estamos no fim da vida. Sim, caros amigos, por mais que o politicamente correto diga que ser velho é estar na “melhor idade”, creio que esses idosos retratados neste animação provarão o contrário. É óbvio que é possível envelhecer com dignidade e de forma até tranquila. Mas também é óbvio que o envelhecimento pode pregar peças terríveis naqueles que ele abraça. O corpo já não reage com a mesma velocidade, o raciocínio pode falhar, a memória tem lapsos e doenças surgem de forma inesperada, tal como um ladrão invade a casa na calada da noite.

O interessante (e trágico) da velhice está no fato de que poucas pessoas realmente olham para o idoso e conseguem ver quem ele foi. O tempo castiga as pessoas e tem o dom de apagar os feitos delas, mas algumas – por intermédio da memória – mantêm esse passado relativamente intacto. Não sei expor os motivos reais, contudo é fato que o passado parece acompanhar as pessoas mais antigas, talvez até como forma de manter a essência desses indivíduos intacta. Nossos atos moldam quem nos tornamos com o decorrer do tempo. Mudamos, crescemos, melhoramos ou pioramos conforme a união de tempo com a vivência aconteça. E isso ficará enraizado no âmago de cada um, mesmo que em alguns casos ele fique escondido.
Emílio tem um passado e não quer esquecê-lo, porém essa decisão não cabe somente a ele. Mesmo distante da família, os idosos do asilo fazem as vezes dos parentes e lhe dão uma dose daquilo que costumamos chamar de família. Miguel é um dos que mais se preocupa com Emílio, ainda que suas brincadeiras e seu jeito malandro não agradem a todos.

Como verão, as aparências podem esconder muito mais do que os olhos captam…
E, como já disse, o passado e as memórias são parte integrante do que nos tornamos, das nossas ações e do caráter que o tempo moldou em nós. Então, o que fazer quando essas memórias começam a sumir lentamente da mente? Como será a terrível sensação de descobrir que horas se passaram desde a última lembrança guardada? O que fazer quando a vida nos dá um tapa na face e grita a plenos pulmões que aquilo que somos será apagado para sempre? Esses são os questionamentos e a realidade com as quais Emílio passa a lidar.

A tristeza de ter tudo que foi vivenciado apagado por uma doença é terrível e de uma crueldade gigantesca. As memórias podem nos surpreender quando nos lembramos de algo bom que ocorreu há décadas; podem nos brindar com o rosto de uma pessoa amada que partiu há longos anos; podem amenizar a dor da distância e até do abandono. Como conviver com a certeza de que as últimas partes do que melhor nos resta estão ruindo diante de uma doença incurável?
A trama transcorre com muita, muita emoção. Emílio e Miguel vivem aventuras ao lado da amiga Antônia, aprofundam os laços e comprovam que ainda que a família nos esqueça, haverá alguém que se lembrará de nós.
Diante de uma história tão comovente, repleta de lições e de um lirismo incomum, Rugas será um filme (ou um livro, caso leia a HQ) que estará em sua memória. Eu sei que o tempo corre para todos e alguns fios brancos já me alertam sobre isso, mas o fato é que espero, sinceramente, que ele seja brando comigo. Que meus atos e aquilo em que me transformaram não seja apagados por uma doença tão cruel. Ainda assim, caso eu não receba esse benefício, espero que alguns ainda guardem boas lembranças de mim.
Rugas é uma obra atemporal, linda e de uma tristeza embutida que só está presente nas grandes histórias deixadas pelos gênios da humanidade, tal como fez Paco Roca. Em meio a uma trama que poderia ser ruim pela “simplicidade” com a qual alguns a abordariam, Paco nos deixa uma obra que contempla uma visão maior sobre o envelhecer em sua plenitude. Há humor na tragédia, assim como há dor em momentos de paz. Não esperem encontrar uma animação frágil, pois o autor nos mostra que a fragilidade é uma condição a qual todos estamos sujeitos, o que não implica em afirmar que isso é um decreto de derrota. Envelhecer pode não ser algo tão irônico quanto a expressão “melhor idade”, mas é fato que todos os percalços dessa fase da vida servem para mostrar o quanto podemos ser fortes no espírito, mesmo que o corpo não responda como antes. Disso, garanto, jamais me esquecerei… mesmo que esta memória fique escondida nos recantos mais distantes da minha mente.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Bethany Townsend, ex-modelo, expõe bolsa de colostomia de forma corajosa.

Bethany Townsend é uma ex-modelo inglesa que deseja, através de sua atitude, incentivar outras pessoas que sofrem do mesmo problema a não ter receio de se expor. Portadora de um problema que a atinge desde os três anos, Bethany faz uso das bolsas de colostomia  que são uma espécie de receptáculo externo conectado ao aparelho digestivo para recolher os dejetos corporais, e desejou mostrar publicamente sua condição.  Quero que outras pessoas não tenham vergonha de sua condição e é para isso que me expus , afirmou a ex-modelo. Bethany usa as bolsas desde 2010 e não há previsão para a remoção das mesmas.  Eu, pessoalmente, concordo com a atitude e respeito-a pela coragem e o exemplo que está dando. Não há outra opção para ela e isso irá forçá-la a viver escondida? Jamais... Veja o vídeo com o depoimento dela. Via BBC

Suzane Richthofen e a justiça cega

Por: Franz Lima .  Suzane von Richthofen é uma bactéria resistente e fatal. Suas ações foram assunto por meses, geraram documentários e programas de TV. A bela face mostrou ao mundo que o mal tem disfarces capazes de enganar e seduzir. Aos que possuem memória curta, basta dizer que ela arquitetou a morte dos pais, simulou pesar no velório, sempre com a intenção de herdar a fortuna dos pais, vítimas mortas durante o sono. Mas investigações provaram que ela, o namorado e o irmão deste foram os executores do casal indefeso. Condenados, eles foram postos na prisão. Fim? Não. No Brasil, não. Suzane recebeu a pena de reclusão em regime fechado. Mas, invariavelmente, a justiça tende a beneficiar o "bom comportamento" e outros itens atenuantes, levando a ré ao "merecido" regime semi-aberto. A verdade é que ela ficaria solta, livre para agir e viver. Uma pessoa que privou os próprios pais do direito à vida, uma assassina fria e cruel, estará convivendo conosco, c

Pioneiros e heróis do espaço: mortos em um balão

* Há exatamente 100 anos subir 7400 metros, num balão, era um feito memorável. Consagrados por isto, três franceses - Sivel, Crocé-Spinelli e Tassandier - resolveram tentar uma aventura ainda mais perigosa: ultrapassar os 8 mil metros de altitude. Uma temeridade, numa época em que não existiam os balões ou as máscaras de oxigênio e este elemento precioso era levado para o alto em bexigas de boi com bicos improvisados. Uma temeridade tão grande que dois dos pioneiros morreram. Com eles, desapareceu boa parte das técnicas de ascensão da época que só os dois conheciam. Texto de Jean Dalba Sivel No dia 20 de abril de 1875, mais ou menos 20 mil pessoas acompanhavam à sua última morada, no cemitério de Père-Lachaise, os despojos de Teodoro Sivel e de Eustáquio Crocé-Spinelli - os nomes, na época da produção do artigo, eram escritos em português para facilitar a leitura e "valorizar" nossa própria cultura. A grafia correta dos nomes é Théodore Sivel e Joseph Eustache Cr