Capítulo
II
Depois que os
pedaços do bilhete já estavam tomando seu rumo aleatório pelo
mundo e Diogo ter esfregado o rosto com tamanha força que em alguns
pontos estavam formados pequenas áreas de vermelhidão, passou a
massagear quase ritualisticamente as suas têmporas com as pontas dos
dedos indicadores e médios. Sua cabeça pesava muito, como se cada
tentativa de assimilar as anomalias tornasse mais difícil mantê-la
levantada. Seus cotovelos ficaram apoiados nos joelhos, onde sua
calça jeans estava mais desgastada.
— O cartão não
tem crédito – falou em tom de deboche.
— Não tem
crédito? Como? Eu coloquei crédito ontem – será que colocou
mesmo? Agora sua memória parecia vacilar como se alguém tivesse
passado uma borracha nesse exato instante no dia de ontem.
— Não sei como
senhor, mas aqui tá mostrando que não há crédito – o tom de
deboche era claríssimo agora. Pelo visto ser um pé no saco era o
passatempo favorito dessa mulher que, aliás, tinha um bigode, fato
que gerou asco em Diogo.
Depois de pensar um
pouco sobre as possíveis saídas para esse pequeno problema disse:
— Será que
poderia ficar aqui na frente mesmo? Vou descer daqui há oito pontos
– o tom de voz era extremamente paciente, todavia na verdade estava
com muita raiva do desprezo dessa mulher que parecia ver no jovem à
sua frente um marginal qualquer.
— Tudo bem, mas só
dessa vez – ao terminar de falar virou seu rosto para a parte de
trás do ônibus.
— Muito obrigado –
‘sua vaca’ completou mentalmente.
Decidiu ficar numa
cadeira perto da janela. Como não havia trazido seus fones de ouvido
para escutar música no caminho para a livraria optou pela distração
mais simples do mundo das pessoas que costumam utilizar os
transportes coletivos, olhar pelas janelas. A rua lhe parecia um
filme sendo rodado em alta velocidade. Por um breve espaço de tempo
Diogo ficou de olhos fechados devido ao pouco sono que vinha
persistindo em sua vida durante este mês, quando começou a ficar
mais desperto teve mais uma surpresa ao visualizar a rua. O que
enxergava agora era um céu escuro como piche no qual, mesmo sem
nuvem alguma, raios surgiam causando clarões que lhe gelavam a
espinha e inspiravam unicamente pensamentos sobre morte. O ar
cheirava à carne decomposta e absorver aquilo ao fazia sentir um
gosto muito estranho, essa não era a palavra certa, a palavra certa
era angustiante. O ar parecia dotado do sabor de todos os fetos
abortados, todos os amores destruídos, cada suicídio cometido, cada
ser humano assassinado, cada animal morto por um capricho cruel de
algum lunático em inicio de carreira. Nossa, parecia que isto era
alguma história do Poe e ele fosse o protagonista. Depois de sentir
o ar e perceber o céu olhou para a direção das construções e viu
um cenário de guerra, provavelmente depois da queda de uma bomba
poderosa. Havia carros abandonados por toda a parte, alguns capotados
e outros reduzidos a carcaças totalmente retorcidas. Os prédios,
casas e pontos comerciais estavam todos cobertos por fuligem e
possuíam buracos em suas faixadas. A pista estava com várias
rachaduras. O mais estranho ainda era o fato de não ver pessoas. Com
uma varredura feita pelos seus olhos viu que o ônibus era a única
coisa nova e intacta nesse quadro pintado por algum sádico pintor.
Agora que estava concentrado no local em que estava notou que o
veículo estava parado, então com uma pequena força de vontade
levantou-se e não viu ali também qualquer outra pessoa.
Com um esforço
ainda maior de sua força de vontade, que agora brincava de cabo de
guerra com as suas pernas, começou a avançar centímetro por
centímetro até a porta de saída que estava fechada. Para ter
certeza de que nenhum perigo o espreitava do lado de fora sondou o
espaço exterior mais uma vez pelas janelas. Se havia algum perigo
ainda não estava por perto ou era astuto o suficiente para se
ocultar, aguardar sua presa parar para um descanso ou se alimentar e
então ‘Zaz’
o ataque rápido e as presas no pescoço do incauto animal.
Quando colocou os
pés, que usavam all stars, em contato com o asfalto viu a fachada da
livraria à sua frente. Afinal havia outra coisa nesta ópera
dedicada à morte, decadência e aos vermes que consomem a carne de
todos que tem suas pálpebras fechadas por mãos de qualquer outra
pessoa, seja algum que nutria amor ou ódio pelo aglomerado de carne
que agora esfria e endurece. Considerando sua atual situação no
esquema das coisas o mais lógico era ir ao porto-seguro que estava
gritando, com a sua própria voz como se ele fosse um daqueles
mestres em ventriloquismo. ‘venha,
entre, tome um café, compre um livro, talvez até você consiga
esquecer a insanidade que está flertando com você, fugir do
bicho-papão embaixo de sua cama’.
O pedido da voz foi atendido, porém antes de entrar, viu na placa de
madeira que ficava acima da porta o nome ‘Livraria...’
o
resto não dava para ser lido, as letras estavam embaçadas, na
verdade pareciam estar brotando neste exato momento. Parecia até que
tudo estava sendo construído agora, o mundo estava nascendo
lentamente como se fosse fruto de uma mente distante dele, não
somente distante, mas literalmente de outro mundo. Com uma
proximidade maior da placa conseguiu ler ‘Livraria
virá-página’
com uma pequena frase abaixo ‘Livros
baratos é o nosso trato’.
Sim, livros baratos eram o sedativo de que precisava nessa louca
narração que estava sendo escrito ao seu redor!
A iluminação da
livraria funcionava perfeitamente, indiferente às ruínas na
vizinhança e a falta de pessoas para comprar ou matar algumas horas
folheando algum livro ou até mesmo uma revista. As cadeiras de
madeira, sem dúvida alguma para dar uma atmosfera mais aconchegante
e clássica ao espaço, estavam em seus lugares habituais, juntas às
mesas. O lugar tinha cerca de trinta metros de comprimento e quinze
de largura, os dons matemáticos nunca foi o forte de Diogo. O lugar
era organizado deveras metodicamente, várias mesas e cada mesa com
quatro cadeiras, um tapete persa na entrada, numa área, pouco depois
do tapete do lado direito, tinha um balcão singelo que era onde as
pessoas poderiam pedir um café, qualquer tipo dessa bebida tão
frequentemente associada ao hábito da leitura, ou talvez um pequeno
lanche, o individuo que abriu esta livraria deve ter pensado ‘Se
vou oferecer alimento para a alma das pessoas que por aqui
transitarem, então devo oferecer igualmente um café para que eles
possam deglutir melhor as palavras e também conceder à preços
camaradas sustento para os seus corpos’,
ao lado de cada mesa ficava uma lixeira, as estantes com os livros
ficavam junto às paredes, elas eram organizado por sessões,
gêneros, e cada sessão era disposta em ordem alfabética. O balcão
para pagamentos de livros ficava no fundo. Enfim, era um verdadeiro
paraíso para os admiradores da arte de criar mundos, universos,
deuses, sonhos etc. Diogo estava perdido em seus pensamentos,
observando onde estava, um lugar que parecia dotado de magia ainda
mais agora, quando teve a impressão de que alguém tinha entrado
também e estava caminhando para perto dele, mas ao dar um giro de
180º graus com o corpo soube que ninguém além dele tinha
adentrado. Estava caminhando para o balcão dos fundos quando começou
a ouvir sussurros, um som que se assemelhava à várias pessoas
falando ao mesmo tempo num tom baixíssimo, tentou determinar de onde
estava vindo, talvez fosse algum sistema de som que existisse na
livraria, mas pelo que lembrava ai não havia sistema de som, mas tão
pouco havia uma cidade em ruínas da última vez que resolveu sair do
seu apartamento, então percebeu de onde vinha o burburinho, isso era
um problema dos grandes, pois as vozes vinham dos livros de todas as
estantes!
Leia a parte 1 de "Mais uma dose"
Leia a parte 1 de "Mais uma dose"
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