Capítulo
V
Como
iniciar a conversa que teve como ponto de partida uma situação tão única? Diogo
sempre achou que nos filmes o andamento da conquista era bem mais fácil, sem
tantos detalhes, parecia que realmente o encontro da garota com o homem em
todas as vezes que acontecia era um evento preparado por todos os habitantes do
mundo, que não passavam de coadjuvantes, e cada palavra dita por ambos
consolida a visão de que a vida afetiva é tão descomplicada como preparar um
macarrão instantâneo. Todavia sabia que tais trilhas eram muito complexas,
perigosas, confusas e nem sempre o que parecia estar bem era garantia de que o
solo continuaria fértil. Era incrível a força que um amor pode desenvolver, as
coisas capaz de realizar, mas a sua fragilidade também era apavorante. Pensava
que os poetas, enamorados e os românticos convictos eram tão grandes
admiradores do amor justamente pelo seu caráter dúbio, indefinido, ameaçador e
simultaneamente acolhedor. Sem equívoco algum poderia bradar que o mesmo
sentimento que já salvou e gerou incontáveis vidas igualmente já ceifou outras
muitas.
—
Você sempre vem aqui? – dirigiu estas palavras clichês para a garota dos lábios
rubros.
—
Nossa! Você por acaso é daqueles caras que em seguida vai já pedir meu número
ou perguntar se aceitou uma bebida? – replicou com um tom irônico – Se for
aceito um café preto com pouco açúcar – sua voz assumiu um jeito simpático.
—
Oh, me desculpe senhorita... - interrompeu sua frase esperando que a garota lhe
revelasse o seu nome.
—
Luana.
—
Me desculpe senhorita Luana, fui deveras indelicado e muito semelhantes aos
homens rudes da plebe em meu anseio por um colóquio com vossa pessoa. Queira
perdoar este incauto galanteador, em vista de que sua beleza ofuscou toda a
minha capacidade de etiqueta e abriu um corte em meu tórax revelando sem
floreios o que se esconde em meu coração. Se desejares e ainda não estiveres
aborrecida posso sem dúvida alguma pedir o café que desejas, mas de uma coisa
lhe advertido: corre o risco de que o açúcar fuja de tua boca e em algum porão
escuro pragueje contra a doçura insuperável que provavelmente possuem vossos
lábios – falou tão enfeitadas palavras para alegrar um pouco mais a conversa e
também porque uma das coisas que já aprendera na vida era que se você é tímido
e precisa conversar com uma garota ser cômico numa dose certa pode operar
milagres.
—
Você é uma surpresa mesmo, se aproxima, eu consigo adivinhar seu nome e
misteriosamente se transforma num tipo arcaico de galanteador. Se me disser que
anda pelas ruas em um cavalo branco e pretende matar um dragão só poderia
concluir que você é um personagem que saltou de um livro de Tolkien talvez –
deixou o livro sobre a mesa e entrelaçou os dedos das mãos.
—
Como você pode ver sou bastante real, um momento, por favor – viu que uma
atendente da cafeteria estava passado por perto e a chamou – Por favor, você
poderia me trazer um café preto com pouco açúcar e outro café com leite com
três colheres de açúcar?
—
Claro, quer algum lanche de acompanhamento?
Diogo
virou-se para Luana e levantou as sobrancelhas numa atitude interrogadora.
—
Não, eu não quero. Obrigado.
—
Por enquanto não iremos querer lanche – já retirando a carteira do bolso
esquerdo da calça perguntou para a jovem atendente loira que usava um uniforme
constituído de uma calça jeans azul, um salto pequeno preto e uma camisa azul
com um bottom onde estava escrito “Alimente
o corpo para continuar alimentando o espírito!” – Quanto vai custar?
Depois
de uma pequena pausa lembrando-se dos preços de cada pedido disse, sem auxilio
de qualquer calculadora:
—
O pedido custará três reais e cinquenta centavos. Vai ser em cartão ou à vista?
—
À vista mesmo – entregou o dinheiro.
—
Vou pegar o seu pedido e já retorno, com licença – se retirou com passos
silenciosos apesar dos sapatos de salto que usava.
—
Interessante, finalmente encontro alguém que não precisa de calculadoras para
pensar em cada mínima coisa que envolva número – apoiou o queixo com a mão
direita – Já notou como as pessoas cada vez mais parecem ter preguiça de
fazerem as coisas por si mesmas? Lavar roupa? Para isso há maquinas de lavar?
Louça? Lava-louças. Enfim, as pessoas são cada vez mais coadjuvantes em suas
próprias vidas.
—
É verdade. Você está demonstrando ser uma garota com mais interrogações do que
exclamações. O que você gosta de fazer além de ficar matando minutos que jamais
retornam, mergulhada em livros? – disse deslizando um pouco mais a mão para
perto das mãos de Luana.
Luana
percebeu o furtivo ataque sendo montado e decidiu não fugir.
—
Atualmente faço faculdade de filosofia, estou no quarto período, tenho uma
bolsa na biblioteca da universidade, isso ajuda muito a pagar os gastos com
material de estudo e transporte. Às vezes tenho que passar quase o dia inteiro
lá e como no restaurante universitário de lá. Não é um exemplo de cuidados com
a higiene do local e com o preparo das comidas, mas até hoje ninguém morreu de
infecção alimentar lá – seu humor negro era bem desenvolvido.
—
Ora, ora. Tenho uma aspirante à comediante conversando comigo? Você ensaiou
muito essa piada? Acho que você a conta para todos os anormais que são
capturados pela sua teia – sua mão direita estava há exatamente cinco
centímetros das mãos dela. Saber o momento de criar contato físico era
imprescindível, um contato prematuro pode amedrontar e um tardio significa
aniquilação de todas as possibilidades.
A
linha de um flerte e suas fases era tênue. Talvez as coisas pudessem ser mais
simples. Se você está afim de alguém poderia chegar perto e falar naturalmente
‘Olha, eu estava passando ocasionalmente
por aqui, olhei para você e pensei: talvez aquela seja uma garota legal que
esteja querendo conversar sobre a vida ou qualquer coisa simples para aliviar o
peso de viver. Então a cartada final: estou sozinho, você está sozinha, vamos
lá baby ficar um pouco juntos e quem sabe dar uns amassos ao som de Elvis’. Era
antiquado esse pensamento, mas Diogo gostava da imagem de um namoro regado ao
som de rock clássico.
—
Eu acho que a comédia é um tipo de filho bastardo da loucura, ela serve para
tornar viver algo suportável. Na minha perspectiva ou você se apega à comédia,
mesmo que em pequenas doses aleatórias, ou você vai cozinhando seu cérebro e
opta pelo suicídio, nessa hora você tem um leque enorme de métodos para findar
o batimento de seu coração. Alguns dolorosos, outros rápidos, você pode obter o
material para um suicídio limpo em qualquer farmácia. Só uma dica: nunca pense
em usar o enforcamento, porque com ele você perde o controle sobre suas funções
fisiológicas. Imagino como deve ser horrível encontrar alguém morto e ainda por
cima todo sujo. Argh - fez uma expressão de nojo semelhante à reação de chupar
um limão muito azedo.
A
garota tinha pensamentos mórbidos, mas antagonicamente emanava uma força de
vida tão forte, ter terna, desperta nele os mais profundos desejos de vida.
—
Concordo com você que a comédia é uma filha bastarda da loucura. Qual a lógica
do riso? Eu lhe digo: O riso não tem lógica. O humor é a antítese de tudo que é
lógico. Causar um sorriso é como cuspir na face do carpinteiro universal que,
segundo defendem alguns, rege tudo com princípios matemáticos – As palavras de
Luana lhe estimulavam o intelecto, realmente eram merecedoras de sua atenção.
Uma
atendente da área da cafeteria caminhava em direção de Diogo e Luana, com passo
de tamanhos uniformes.
—
Aqui está o pedido de vocês – colocou a xícara com café preto em frente à
garota e a outra com café com leite na frente do outro jovem.
Diogo
com um sorriso grande e sincero agradeceu pelo atendimento. Enquanto saboreavam
o café, muito delicioso por sinal, conversaram sobre tantos outros assuntos.
Cinema, música, livros, teatro, sonhos, desilusões, planos tipicamente
adolescentes, noites de insônia, o sofrimento de saber, a angústia de sentir,
os primeiros amores e beijos que sugavam a vida e a deixava suspensa. A longa
conversa, que durou até a hora do almoço, aproximou seus mundos, revelou que
ambos possuíam uma afinidade muito forte, algo que talvez no mundo globalizado
de bombardeamento de informações as pessoas demorassem mais para desenvolverem.
A afinidade deles era quase como se fossem duas faces da mesma moeda.
—
Eu tenho de voltar para casa, meus pais disseram que à tarde vamos visitar uma
tia minha que está internada em um hospital devido a uma pneumonia que contraiu
semana passada – comentou olhando para o relógio no pulso esquerdo e com traços
claros de tristeza no rosto.
—
É uma pena interrompermos nossa confabulação agora. Eu estava gostando tanto –
agora sim, pegou na mão dela que estava com o relógio, entrelaçaram os dedos e
os olhares se cruzaram. Tudo literalmente parou ao redor de Diogo, até mesmo
Luana.
Quando
teve certeza de que a paralização não era um delírio, ao perceber um pombo
parado na frente da livraria em pleno ar, com uma expressão que oscilava
drasticamente para a confusão ficou à beira de perder o controle de si, quase
verdadeiramente louco, quando tudo voltou a se movimentar. Luana perguntou,
pronunciando lentamente cada palavra:
—
Algum problema?
—
Não, foi que pensei ter visto um crocodilo albino passando pela rua com um bebê
na boca – fez essa piada para aliviar sua consciência e se concentrar no
contexto em que estava, mas ainda refletia sobre o ocorrido.
—
Muito hilário! Será que você poderia me acompanhar até o ponto de ônibus? Uma
garota não pode ficar andando dando sopa sabendo que um crocodilo albino está
solto – acariciou a mão de Diogo com meiguice suficiente para fazê-lo se sentir
mais leve.
—
Sim, claro que posso e vou – fez uma pequena pausa pegando o livro que havia
retirado da estante de terror – Você pode me esperar só um pouquinho? Preciso
pagar por este livro – indicou-o como se
estivesse oferecendo-o para ela.
—
Certo.
Levantou-se
e foi pagar pelo livro, mas quem estava agora no balcão era um senhor de
cabelos grisalhos.
—
Quero pagar por este livro – depositou-o no balcão.
—
Vou checar o preço dele, com licença – pegou o livro, ficou em frente a um
computador, pegou um leitor de código de barras para consulta e disse: - o
livro custa vinte e oito reais. Deseja comprar mais alguma coisa? – pelo seu
timbre o balconista explicitava a falta de vontade em atender alguém.
—
Não, por hoje só esse mesmo – retirou da carteira trinta reais e colocou em
cima do livro.
O
senhor ranzinza pegou o livro e ao mesmo tempo o dinheiro, colocou o livro em
uma sacola marrom com o logotipo de um livro com braços, pernas, olhos e uma
boca pequena, um autêntico homem-livro. Contou o dinheiro, abriu a caixa
registradora, retirou o troco, entregou-o junto com o produto pago e uma nota
fiscal depositada dentro da sacola.
—
Muito obrigado por comprar na livraria vira-página, boa leitura e volte sempre
– disse este bordão sem qualquer mínima porção de sinceros desejos. Isto é o
que acontece com as pessoas que começam a buscar qualquer atividade remunerada
para terem uma vida supostamente melhor em detrimento do que a sua felicidade
requisitava para pelo menos dar o ar da graça em momentos que fariam todo o
resto valer algo mais.
—
Muito obrigado – replicou cortesmente.
Voltou-se
para Luana e com a sacola na mão direita ofereceu o braço livre, como um
cavalheiro faria, ao ficar lado-a-lado e ela aceitou. Foram para o ponto de
ônibus que tinha em frente à livraria e sentaram com os braços ainda
enganchados. Só havia um homem extremamente magro no ponto, mas ele foi embora
pouco tempo depois em uma van de cor amarela.
—
Essa manhã foi muito legal, me sinto com contentamento – disse Luana com um
suspiro para finalizar a frase.
—
Realmente foi uma manhã atípica nesse fenômeno que chamamos de vida. Tão fora
dos eixos que poderia inspirar alguma história, um pouco confusa, talvez com um
fim sem muitas respostas. Mas se na vida real não ganhamos todas as respostas
por mais perspicazes que sejamos por que transferir essa exigência para a
ficção?
—
Porque na ficção os autores são capazes de manipular cada evento, forjar um
sentido maior para tudo que se justifique a cada ação e reação, antecipar como
será o fim, realizar seus desejos mais soturnos canalizando todo o seu negativo
e conseguindo uma catarse, expor suas múltiplas faces por meio de seus
personagens.
Depois
de tantas palavras trocadas Diogo optou per ser mais incisivo, como os dentes
de um vampiro no pescoço de uma virgem.
—
Interessante seu raciocínio, mas a grande incógnita desse momento é... – parou
considerando que Luana tivesse o poder de ler seu pensamento.
Continuou
ela, surpreendendo-o, pois conseguiu mesmo continuar a linha do que iria falar.
—
Quando eu vou beijá-lo? Sabia bem no meu intimo que você estava pensando nisso
– suas bochechas enrubesceram e ela desviou seus olhos para os próprios pés.
Diogo
largou a sacola com o livro num banco livre do ponto de ônibus e pegou no
queixo dela com o dedão e o indicador, redirecionou com delicadeza os olhos
dela para os dele. Gradualmente eles foram se aproximando, tudo que acontecia
na cidade acontecia em um plano de existência paralelo e muito menos
interessante, eles estavam sentindo a respiração um do outro, o cheiro dela era
doce e calmante, entorpecedor, quase uma taça de vinho, assim que seus lábios
estavam para se tocar ela suspirou e Diogo engoliu o ar exalado, a carne se
tocou, a respiração era somente uma, os corações estavam sincronizados, suas
almas ou pneuma como os gregos denominavam, bailavam em suas bocas, para eles
era um evento tão esplendoroso quanto visualizar uma supernova. O beijo durou
por um tempo somente compreendido pelo cupido, pois não é aquele com o qual
estão familiarizados os mortais. Quando as bocas se distanciaram, já com
saudades uma da outra, ainda permaneceram parados se olhando até que o silêncio
foi rompido por Luana que meio atordoada disse:
—
O que eu deveria falar agora? Juro que nunca tive uma intuição tão forte e no
fim com um aspecto tão amargo. Apesar da alegria de estar agora aqui, sinto tão
grande angústia e pesar como se algo muito ruim estivesse para acontecer. Minha
mãe insiste em achar que sou mediúnica.
—
Acho que não é necessário dizer muitas coisas, porque muitas palavras não são
sinônimas de um grande sentido. Acho que esse mau pressentimento talvez seja
unicamente uma impressão errônea. Não tem com o que se preocupar.
—
Certo, espero que esse mau augúrio não se confirme – falou agarrando Diogo e
deixou a cabeça em seu ombro – Onde você mora? Queria lhe fazer uma visita à noite.
Claro, se você quiser.
—
Sim, irei gostar muito. Hoje irei me aventurar na cozinha – Diogo deu seu
endereço.
—
Certo, então farei um esforçozinho para estar mais arrumada já que um chef irá
me recepcionar.
—
Claro, mon chéri - usou uma imitação de sotaque francês - Aquele seria seu ônibus? - apontou para um ônibus brancos que estava chegando.
Como
desperta violentamente de um sono profundo soltou Diogo e olhou na direção
indicada.
—
Sim. Por que ele não poderia demorar mais para chegar? Queria ficar mais tempo,
mas tenho mesmo de ir – deu um sinal para o ônibus e ele parou – À noite o
verei – deu três rápidos beijos e entrou no ônibus acenando.
Após terminar este primeiro encontro, antes de
voltar para casa, viu uma pichação na parede de um colégio ao lado do ponto de
ônibus, em tinta vermelha, alguns filetes da tinta escorreram até o chão, ‘O fim está próximo’. No ônibus branco
uma tristeza vinda do nada atravessou como uma lança o coração de Luana.
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