Este trabalho foi publicado na coletânea Cassandras, onde cada escritor fez seu conto sobre a musa inspiradora. Trabalhos incríveis estão presentes na antologia e, finalmente, disponibilizo meu conto, que será publicado em 4 partes. Esta é a primeira parte e eu espero que seja do agrado de todos. Com vocês. Comentem, pois a opinião de vocês irá influenciar novos trabalhos. Com vocês:
Por Ti, Cassandra
I
Jacques está há pouco tempo como bombeiro. Em seus dois anos e meio de serviço já passou por muitas situações incomuns. Hoje, para variar, uma novidade o atingiu absolutamente desprevenido.
São quase 18 horas e o dia correu calmo. Chegou às 07h30 para poder tomar o café da manhã e entrar de serviço. O plantão é de 24 horas corridas e isto implica em sua saída apenas no dia seguinte.
São quase 18 horas e o dia correu calmo. Chegou às 07h30 para poder tomar o café da manhã e entrar de serviço. O plantão é de 24 horas corridas e isto implica em sua saída apenas no dia seguinte.
Formou e acompanhou o cerimonial à bandeira. Por ser uma sexta-feira, todos cantaram o hino nacional e Jacques, como a maioria, reclamou disto, apesar de ter plena convicção da importância desta demonstração de patriotismo.
O restante do expediente correu normal. Não houve uma ocorrência grande o suficiente para tirá-lo do quartel e, por isso, a televisão foi sua leal companheira entre um cochilo e outro.
Mas a calma acabou quando o Oficial de Dia acionou o grupo de socorro externo. Eles teriam que averiguar um pedido de resgate a um escritor famoso. O homem estava desaparecido há três dias e a vizinhança suspeita de seqüestro ou algo pior. O apartamento do homem está fechado e ele não tem parentes ou amigos, excetuando-se o agente e as pessoas da editora à qual ele trabalha, responsáveis por informar à polícia de seu desaparecimento e também da falta de retorno no celular, aparentemente desligado.
O resgate foi composto com um médico, dois enfermeiros, um socorrista e um motorista na UTI móvel. Em outra viatura, seguiram Jacques e Pedro, para remoção de um possível cadáver.
Já uniformizados, foram ao apartamento indicado. Apesar de ser um prédio muito bonito, não havia elevadores e subiram as escadas até o 4º andar, onde uma vizinha mostrou o apartamento do escritor desaparecido.
Bateram à porta por mais de 5 minutos sem qualquer resposta. Olharam pelo vão da porta, mas, estranhamente, algo impedia a visão.
Sem outra opção, a porta foi arrombada. A escuridão era intensa, exceto por uma televisão ligada, fora do ar. Um dos enfermeiros e o socorrista entraram e, instantaneamente, vomitaram. O cheiro de podridão atingiu os homens. Jacques ficou tonto e quase caiu. Lanternas foram acesas, iluminando aleatoriamente algumas partes do apartamento. Havia muito sangue pelo chão, que estava pegajoso. As portas receberam borrachas para vedar e as janelas foram lacradas por pregos e cola.
Não restava qualquer dúvida: alguém fora assassinado. O médico acionou a polícia, enquanto a equipe de socorro avançava ainda mais para o interior do lugar. Dez dedos de mãos estavam dispostos em forma de seta e, com esta indicação, encontraram algo indefinido.
Jacques estava mais atrás quando os gritos começaram. Homens o empurraram sem se importar com a escuridão e os tombos pelos choques com os móveis. O pânico era tangível, palpável.
O jovem bombeiro estava impregnado pelo medo, porém a curiosidade era maior. Com lentidão, ele foi à frente, ciente de que algo iria atingi-lo de uma forma diferente. E seu temor se concretizou quando a lanterna iluminou o que parecia ser um quarto. Lágrimas brotaram em seus olhos e, naquele momento, a alma de Jacques foi consumida pela certeza de que Deus não estava naquele lugar.
Eram 19h26 do dia 6 de junho de 2010. Dois seres humanos estavam mortos no apartamento do escritor Paul Wolfghann. Um tinha o corpo podre. O outro estava com a alma e a mente fedendo tanto quanto os restos desossados encontrados.
Bateram à porta por mais de 5 minutos sem qualquer resposta. Olharam pelo vão da porta, mas, estranhamente, algo impedia a visão.
Sem outra opção, a porta foi arrombada. A escuridão era intensa, exceto por uma televisão ligada, fora do ar. Um dos enfermeiros e o socorrista entraram e, instantaneamente, vomitaram. O cheiro de podridão atingiu os homens. Jacques ficou tonto e quase caiu. Lanternas foram acesas, iluminando aleatoriamente algumas partes do apartamento. Havia muito sangue pelo chão, que estava pegajoso. As portas receberam borrachas para vedar e as janelas foram lacradas por pregos e cola.
Não restava qualquer dúvida: alguém fora assassinado. O médico acionou a polícia, enquanto a equipe de socorro avançava ainda mais para o interior do lugar. Dez dedos de mãos estavam dispostos em forma de seta e, com esta indicação, encontraram algo indefinido.
Jacques estava mais atrás quando os gritos começaram. Homens o empurraram sem se importar com a escuridão e os tombos pelos choques com os móveis. O pânico era tangível, palpável.
O jovem bombeiro estava impregnado pelo medo, porém a curiosidade era maior. Com lentidão, ele foi à frente, ciente de que algo iria atingi-lo de uma forma diferente. E seu temor se concretizou quando a lanterna iluminou o que parecia ser um quarto. Lágrimas brotaram em seus olhos e, naquele momento, a alma de Jacques foi consumida pela certeza de que Deus não estava naquele lugar.
Eram 19h26 do dia 6 de junho de 2010. Dois seres humanos estavam mortos no apartamento do escritor Paul Wolfghann. Um tinha o corpo podre. O outro estava com a alma e a mente fedendo tanto quanto os restos desossados encontrados.
O promissor bombeiro nunca mais voltou a falar.
II
Ela despertou sem saber o que ocorria. Sua cabeça doía e os olhos pareciam querer explodir. As mãos formigavam, ao passo que seus ouvidos captaram gritos, cânticos e urros. Algo, pensou, estava terrivelmente errado.
Cassandra abriu os olhos e sentiu a dor da luz a penetrar-lhe as pupilas. Suas mãos foram amarradas com extrema habilidade e força, o que gerava a sensação de dormência. O corpo balançava em um ritmo veloz. Alguém muito grande a transportava nos ombros, indiferente ao seu sofrimento. Por instinto, a jovem mulher permaneceu calada. Em seu íntimo, algo indicava ser este o caminho para viver mais.
Ao redor, homens, mulheres e crianças clamavam por piedade, força ou coragem. Outros pediam colheitas férteis e mulheres mais férteis ainda. Mães imploravam para deuses sem nome pelo retorno seguro de seus filhos. Filhos desejavam adquirir a força dos pais ausentes.
A realidade de tudo a atingiu com intensidade. Então, os sons cessaram e apenas o crepitar de uma fogueira rivalizava com as respirações ofegantes.
Cassandra abriu os olhos e sentiu a dor da luz a penetrar-lhe as pupilas. Suas mãos foram amarradas com extrema habilidade e força, o que gerava a sensação de dormência. O corpo balançava em um ritmo veloz. Alguém muito grande a transportava nos ombros, indiferente ao seu sofrimento. Por instinto, a jovem mulher permaneceu calada. Em seu íntimo, algo indicava ser este o caminho para viver mais.
Ao redor, homens, mulheres e crianças clamavam por piedade, força ou coragem. Outros pediam colheitas férteis e mulheres mais férteis ainda. Mães imploravam para deuses sem nome pelo retorno seguro de seus filhos. Filhos desejavam adquirir a força dos pais ausentes.
A realidade de tudo a atingiu com intensidade. Então, os sons cessaram e apenas o crepitar de uma fogueira rivalizava com as respirações ofegantes.
Passos acelerados. Uma ordem emitida e, em segundos, um homem eleva a cabeça da mulher pelos cabelos. A dor a impede de dizer qualquer coisa e, aterrorizada, emite algo próximo ao som de choro.
Um homem magro a encara. Não há brilho em seus olhos. Não há compaixão. Sua presença ali era a prova de que os instintos de Cassandra não falharam.
Dos lábios do homem brotou um leve sorriso, tomado por um hálito tão podre quantos os poucos dentes restantes. Repentinamente ela percebe algo que amplia seu pânico: uma faca feita de pedra, tão afiada quanto a língua dos maledicentes.
Ao antever o que a aguardava, ela pôs o temor de lado e profetizou: “o sangue secará, os ossos voltarão ao pó, mas meu espírito sempre será eterno.”
A última cena registrada por seus olhos foi a do próprio corpo sem a cabeça, pendurado nos ombros do homem.
Naquele mesmo instante, os cânticos recomeçaram.
Um homem magro a encara. Não há brilho em seus olhos. Não há compaixão. Sua presença ali era a prova de que os instintos de Cassandra não falharam.
Dos lábios do homem brotou um leve sorriso, tomado por um hálito tão podre quantos os poucos dentes restantes. Repentinamente ela percebe algo que amplia seu pânico: uma faca feita de pedra, tão afiada quanto a língua dos maledicentes.
Ao antever o que a aguardava, ela pôs o temor de lado e profetizou: “o sangue secará, os ossos voltarão ao pó, mas meu espírito sempre será eterno.”
A última cena registrada por seus olhos foi a do próprio corpo sem a cabeça, pendurado nos ombros do homem.
Naquele mesmo instante, os cânticos recomeçaram.
III
A bela mulher cantava algo romântico. Paul não sabia o que dizia a música, porém teve vontade de chorar ao ouvi-la. Ela é muito bela — já citei isso? — e , sem dúvidas, jamais iria dar atenção para um derrotado. E sabe o que é pior? Eu sou muito mais desprezível que um derrotado, pois desisti do único presente que ganhei em toda a minha existência: a vida. Viver transformou-se em algo totalmente sem sentido. Não tenho um trabalho, mulher, dinheiro ou amigos. Vivo em um mundinho medíocre e insensato, rodeado por pessoas sedentas de dinheiro, nada mais.
Saí do lugar em que a cantora se apresentou e retornei para casa ouvindo o eco de suas canções.
Cheguei a meu apartamento, abri o chuveiro e aguardei a água esquentar. Fui para baixo do chuveiro e a água lava meus pecados. O frio do metal me assustou e vi, rapidamente, uma mulher sangrando pelo pescoço e, o mais estranho, sorrindo.
Era a minha hora de morrer.
IV
Ao longo dos milênios ganhei poder, conforme descobria como manter minha essência viva.
A carne é um invólucro, um vidro que impede a perda do perfume, nada mais. O que somos, essencialmente, já foi gravado em nossas almas e, ao vivermos, apenas aprimoramos ou degradamos isso.
Demorei muito a perceber como voltaria. O processo é difícil demais, principalmente na escolha do locutor. Os seres humanos sempre temeram o desconhecido e, desde minha morte, faço parte deste panteão.
Vi mortos a vagar junto de seus entes queridos, apenas motivados pelas orações, na Roma antiga.
Deuses de inúmeras civilizações reinavam entre seus fiéis. Isto duraria até que a fé neles perdurasse e, para isto, usavam de todos os recursos para manter as preces altas e os joelhos dobrados.
O primeiro deles eu vi assim que me mataram. Minha presença não fora sentida, já que ele regozijava-se entre os membros do clã onde fui sacrificada. O deus, para quem derramaram meu sangue, foi aquele que, inadvertidamente, iluminou o caminho que eu iria trilhar.
Era o início do caos.
Demorei muito a perceber como voltaria. O processo é difícil demais, principalmente na escolha do locutor. Os seres humanos sempre temeram o desconhecido e, desde minha morte, faço parte deste panteão.
Vi mortos a vagar junto de seus entes queridos, apenas motivados pelas orações, na Roma antiga.
Deuses de inúmeras civilizações reinavam entre seus fiéis. Isto duraria até que a fé neles perdurasse e, para isto, usavam de todos os recursos para manter as preces altas e os joelhos dobrados.
O primeiro deles eu vi assim que me mataram. Minha presença não fora sentida, já que ele regozijava-se entre os membros do clã onde fui sacrificada. O deus, para quem derramaram meu sangue, foi aquele que, inadvertidamente, iluminou o caminho que eu iria trilhar.
Era o início do caos.
V
Enquanto a água caía, comecei a cantar a música da mulher do clube. Minha voz era um sussurro, tamanha a vergonha de mim.
A água corrente arrastou para os esgotos a essência má que existia. Fiz várias preces, todas pedindo por uma partida rápida e o perdão pelo que faria. Não é um jeito digno de partir, mas eu acreditava que minha permanência nada traria de bom.
Caso exista mesmo um Deus, ele sabe tudo que passei. Não é possível ninguém ter presenciado todas as humilhações e o desprezo e escárnio com que me atingiram. — Não há testemunhas a meu favor? — questionou, enquanto o vapor embaçava o espelho.
Paul olhou para baixo. Seus dedos passearam pelo fio da lâmina, criando leves filetes de sangue.
— Vou derramar isto por você. Não sou um covarde, sei que sabe, porém não há mais o que fazer. Tudo me foi negado. Se ao menos eu tivesse recebido algo e depois o perdesse, como Jó, ao menos teria a certeza de sua existência. Por que me abandonou? — inquiriu, enquanto suas lágrimas se mesclavam às águas do chuveiro.
A faca subiu quase mecanicamente ao pescoço. No espelho, uma mulher sorria, mesmo com o pescoço cortado, de onde saía sangue demais. Pensei estar em choque, ainda que não tivesse me cortado.
Forcei a lâmina e minha pele sangrou. Hesitei. Então, antes que a coragem voltasse, ouvi as doces palavras da mulher, já ao meu lado. Ela não sangrava mais e, com sutileza, impediu-me de prosseguir com o sacrifício.
— Nada disso é necessário. — disse. — Vou ajudá-lo a sair do limbo e, para isso, basta acreditar em mim.
A faca caiu de minhas mãos e seu som ecoou, mesmo com o barulho do chuveiro. Senti uma proteção indescritível me englobar e, junto com ela, o torpor de um sono calmo como jamais tive.
Era o recomeço da minha vida. Eu estava no ventre de uma deusa.
Caso exista mesmo um Deus, ele sabe tudo que passei. Não é possível ninguém ter presenciado todas as humilhações e o desprezo e escárnio com que me atingiram. — Não há testemunhas a meu favor? — questionou, enquanto o vapor embaçava o espelho.
Paul olhou para baixo. Seus dedos passearam pelo fio da lâmina, criando leves filetes de sangue.
— Vou derramar isto por você. Não sou um covarde, sei que sabe, porém não há mais o que fazer. Tudo me foi negado. Se ao menos eu tivesse recebido algo e depois o perdesse, como Jó, ao menos teria a certeza de sua existência. Por que me abandonou? — inquiriu, enquanto suas lágrimas se mesclavam às águas do chuveiro.
A faca subiu quase mecanicamente ao pescoço. No espelho, uma mulher sorria, mesmo com o pescoço cortado, de onde saía sangue demais. Pensei estar em choque, ainda que não tivesse me cortado.
Forcei a lâmina e minha pele sangrou. Hesitei. Então, antes que a coragem voltasse, ouvi as doces palavras da mulher, já ao meu lado. Ela não sangrava mais e, com sutileza, impediu-me de prosseguir com o sacrifício.
— Nada disso é necessário. — disse. — Vou ajudá-lo a sair do limbo e, para isso, basta acreditar em mim.
A faca caiu de minhas mãos e seu som ecoou, mesmo com o barulho do chuveiro. Senti uma proteção indescritível me englobar e, junto com ela, o torpor de um sono calmo como jamais tive.
Era o recomeço da minha vida. Eu estava no ventre de uma deusa.
(Continua...)
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